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Somos nós, outra vez

Daniela Mata Machado

Nós envelhecemos muito nesses anos. Todos nós. Sozinhos e protegidos pelos filtros do Instagram, escondemos de todos os nossos amigos o tamanho das dores que enfrentamos nesses tempos de solidão e de desesperança. Mas no domingo, apesar das rugas, dos corpos envelhecidos, dos cabelos embranquecidos e da dor que às vezes mal conseguíamos disfarçar, nós não estávamos velhos. Domingo nós levamos a nossa adolescência às ruas. Levamos o grito de uma esperança que parecia ter sido roubada de nós e pintamos a Avenida Brasil de um vermelho vivo. O vermelho da nossa energia yang. Da força que temos. Da crença que temos.

Tinha gente na cadeira de rodas, tinha gente com apoio de andador, tinha a minha prima com o dedo quebrado e um rapaz ao meu lado com a perna enfiada dentro de uma bota imobilizadora. Tinha muitos ambulantes, idosos, um monte de mães com crianças pequenas, de pais carregando bebês, de moradores de rua, de indígenas com trajes típicos. Tinha até um senhor, com a barba bem branca, tocando um tamborim lá em cima da árvore. Éramos nós, outra vez, ocupando as ruas. Não pedacinhos de rua, timidamente, assustados… A rua inteira pulsava com a nossa esperança cheia de alegria, de música, de dança e de fé no futuro. 

Quem só descobriu as ruas quando decidiu impor aos outros a sua vontade e a sua arrogância nunca vai entender o que foi a alegria desse domingo. Depois desses anos de grito contido e de samba no escuro – você me concede essa licença poética, né Chico? –, a gente sentiu a alegria de se esparramar mais uma vez pelas ruas, como fizemos sempre, tantas vezes, invariavelmente com o mesmo objetivo: garantir um pouco menos de desigualdade e um pouco mais de liberdade a todos. Todos mesmo. “Moça, você viu Chico lá em cima?”. É claro que eu tinha visto. “Pois é, moça, eu estou aqui, do mesmo lado que Chico Buarque! Eu e Chico estamos juntos, vê!” Era uma garota jovem, que eu nunca havia visto antes disso, quem me parava para dizer aquilo. Eu estava do mesmo lado que ela. E estávamos, ambas, do mesmo lado que Chico. Desde sempre.

Éramos, novamente, uma multidão de gente lutando do mesmo lado. É claro que não tinha agressão. É claro que não havia medo. É claro que nos esfregávamos uns nos outros, sem abrirmos espaço para apartar diferenças. Aquele mar de gente era tanto mais bonito quanto mais acolhia as diferenças. Todas elas. Porque a beleza das ruas ocupadas está no acolhimento de todas as cores dessa ocupação. É por essa diversidade que a gente sempre se uniu. Desde que tínhamos os cabelos mais escuros, a pele mais lisa e as pernas mais firmes, como a meninada que – olha que sorte! – agora segue ao nosso lado e continua cantando as mesmas canções que os nossos pais cantaram. Salve Chico!

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente”

*
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