Peter Rossi

(*) com ótimas sugestões de Júnia Pereira

Neco vivia uma vida de menino, como um menino, enfiado nos grotões das Gerais, numa casa simples, porém alvissareira, com um quintal e um alpendre que iam até o fim do mundo. Para Neco o mundo cabia todo ali. Na sua inocência, imaginava que nada mais existia além daquela cerca de bambus, na qual ficava grudado o galinheiro.

O chão de terra batida cuidava de colorir um verdadeiro rodapé marrom na casa caiada. Uma escada de vermelhão e algumas treliças a delimitar a varanda. Ali, agachado, olhando entre os losangos, Neco admirava o fim do mundo à sua frente.

Com quatro anos, sabia direitinho a hora em que o pai voltava da roça, com uma baita enxada sobre os ombros. A calça, sempre marrom, fosse de qual cor, e uma camisa de malha, sobreposta por outra de manga comprida, xadrez. Nos pés, as velhas botinas, que estralavam sempre que alcançavam a escada da frente.

Neco conhecia bem o cheiro do pai, pois quando seu Nonô saía do banho, vinha com ele o perfume do “Leite de Rosas”. Aquele cheirinho entrava em seu pequeno nariz, lhe dizendo que era a hora de correr pros braços do pai.

No ar, misturavam o cheiro do “Leite de Rosas” e o do fumo de rolo, ao cair da tarde. 

Sentado no colo de seu Nonô, Neco exalava tudo aquilo e perguntava sem parar. Perguntava sobre a enxada, sobre a terra, sobre os passarinhos. Seu Nonô tinha a mania de espalhar milho moído na frente da casa para que os passarinhos viessem alegrar o dia, e eles vinham, e o dia, de fato, era muito mais alegre assim. Seu Nonô sabia das coisas. Não era muito de beijo e abraço. Suas respostas eram sempre curtas, pouco abria a boca, mas Neco amava o pai. No seu colo, esticava os pequenos braços para trás, até tocar a nuca do velho. Seu Nonô gostava, mas fingia não gostar.

A vida passava, permeada por passarinhos e pelo galinheiro no fim do mundo, até que um dia Neco esperou agachado na varanda por horas e horas e… seu Nonô não veio. Ele sumira dali. Um tremendo vazio, nenhum vulto sequer. O menino não entendia aquela ausência e sua mãe não cuidou de explicar. Sumiu e sumiu, como as estrelas somem ao raiar do dia, como somem as tristezas quando lembrava do cheiro do “Leite de Rosas”.

Neco deixou de ser menino. As coisas acontecem sempre assim. As pernas esticam e a gente vê a infância lá do alto. Uma barba danada coçava seu queixo. A voz então, parecia um trovão.

Mas Neco nunca deixou de esperar seu Nonô. Não dizia nada a ninguém, mas estava sempre esperando.

Com o tempo, aprendeu que o fim do mundo não era mais só o seu quintal. Conheceu outras pessoas, mas sempre pensando na nuca do pai. Observou que mais acariciava o pescoço do velho e pouca lembrança tinha daquele rosto enrugado, aliás, não tinha lembrança nenhuma, era forçado a reconhecer. Do pai, tinha na memória a parte de trás do pescoço, do rosto quase nada lembrava.

Começou a labutar na roça e aos domingos ia pra cidade para um dedo de prosa com os demais cabras. Sentados na venda do Tião, tomavam uma cachacinha e danavam a rir, uns dos outros, uma bobeira só, mas a felicidade vinha assim. Ensinou ao Tião a técnica do pai e o comerciante espalhava milho moído pra atrair a passarinhada. Canto bonito, traziam eles. Apesar de homens feitos, não desaprenderam de admirar a beleza dos passarinhos, uma das mais lindas que há!

Sobre o seu Nonô, ninguém falava nada. Quando, vez ou outra, saía algum assunto, percebiam a tristeza de Neco com seus olhos marejados, e logo cuidavam de mudar o rumo da prosa.

Certa vez, foram ao povoado vizinho, onde estava ocorrendo uma quermesse pela graça de algum santo. Era barraquinha, muita dança, rojão e bandeiras coloridas. À noite, vinha a procissão, todos cantando o seu louvor: beatas, bêbados e gente normal.

As vendas cheias, com boa cachaça, linguiça fresca e farofa, era tudo uma festança só. Neco, em pé, na escadaria da igreja, observava aquilo, com o olhar firme de sempre.

Alguns amigos vinham lhe apresentar novos companheiros e Neco parecia alheio a tudo, com o olhar perdido na multidão. As pessoas passavam, indo e vindo, aqui e acolá, e Neco olhava atentamente cada uma delas, seja que rumo tomassem. Um olhar enjambrado, doído, depois do acontecido. 

O moço só mirava quando a cena já tinha passado.

Afonso, filho do Tonho, observou aquilo e logo reparou que Neco não olhava ninguém no rosto, não fitava os olhos. As pessoas que passavam, principalmente as mais velhas, ele esperava que caminhassem um pouco e mirava o olhar em suas costas, como um bandoleiro de tocaia.

O amigo achou estranho, mas cuidou de espreitar mais um pouco. Era verdade, Neco só prestava atenção às costas das pessoas. Se ainda fosse mulher, ele entenderia, mas isso acontecia com todo mundo. Passava quem fosse, e o olhar destinado era sempre de soslaio.

A noite decorria e Afonso, encorajado por algumas doses de pinga pensava em como abordar o amigo: Neco, por que você tanto olha as costas das pessoas? Isso é muito esquisito, homem! Mas a pergunta repousou no seu peito e ficou quietinha na garganta.  

Quando pensava em já falar, observou a entrada na venda de um velho senhor, com as calças empoeiradas, a camisa xadrez e, sentado ao lado do amigo, percebeu que ele não tirava os olhos das costas daquele homem. Quando atendido, o velho virou e uma expressão de tristeza tomou conta de Neco, sua expressão era de profunda decepção.

Foi quando Afonso entendeu tudo. Como podia ser tão desatento assim! As experiências da vida nem sempre estão na frente de nossos olhos, ele pensou. Um simples gesto, um cheiro, uma voz, qualquer dessas servem pra retomar nossas lembranças e botar em palpitação o nosso coração, vestindo a gente de esperança e coragem, como um gibão a nos proteger de nossas ausências. 

Afonso teve a certeza de que, na verdade, Neco não fugia do olhar das pessoas, ele simplesmente buscava, através da nuca delas, reconhecer o pai que nunca mais viu e que tanto fazia ventar frio no seu coração de menino, coração que ainda teimava em continuar no mesmo lugar.

*
Curta: Facebook / Instagram
Blogueiro

View Comments

  • Parabéns!! Pelo seu lindo texto,bem escrito ,com ricos em detalhes. Assim pude visualizar a cerca ,o chão de terra batida, sentir o cheiro de leite de rosas,o canto dos pássaros e a dor de Neco,através do coraçãozinho palpitando de saudades do seu pai.Adorei !!

Share
Published by
Blogueiro
Tags: Peter Rossi

Recent Posts

O Isqueiro de Maconha em Israel

Wander Aguiar Lembram do churrasco na Palestina? Pois bem, esqueci de apresentar um personagem inusitado…

9 horas ago

Mona Lisa

Está em cartaz em Belo Horizonte até o dia 8 de dezembro no Espaço 356,…

16 horas ago

Voo, voa, avua

Sandra Belchiolina sandra@arteyvida.com.br Voo, Voa, avua, Rasgando o céu, Voo no deslize. Voo, Avua, Rasgando…

2 dias ago

Dia da consciência negra: sobre o racismo e as relações de escravidão modernas

Daniela Piroli Cabral contato@dnaielapiroli.com.br Hoje, dia 20 de Novembro, comemora-se mais um dia da Consciência…

3 dias ago

Holofote, holofote, holofote

Eduardo de Ávila Assistimos, com muita tristeza, à busca de visibilidade a qualquer preço. Através…

4 dias ago

Merecimento

Silvia Ribeiro Nas minhas adultices sempre procurei desvendar o processo de "merecimento", e encontrei muitos…

5 dias ago