Década de cinquenta, na cidade do Rio de Janeiro. Deco era um filósofo e, como todos, vivia no mundo da lua.
Apesar de mais de cinquenta anos de idade, não se importava em transitar pela cidade, de um lado para o outro. Falo de cinquenta anos em uma época em que ter essa idade era ser idoso. Hoje somos jovens aos oitenta, mas nem sempre foi assim, a história nos diz.
Era o xodó das irmãs, mas vivia na cidade do Rio de Janeiro, então estado da Guanabara. Nazinha e as demais viviam em Belo Horizonte. Se viam pouco e, naquela época, as mensagens custavam a chegar, sob a forma de cartas.
Deco era professor universitário, vivia no meio acadêmico, em meio aos alunos que a todo tempo o desafiavam bem como à sua paciência. Assim, a única saída era colocar o cérebro no automático e com isso descansar. As ações cotidianas o cérebro de Deco trataria de cuidar, de colocar em operação. Assim pensava ele.
Mas, sabemos, nem sempre funciona assim.
Numa dessas, saindo da aula, Deco atravessou a rua em frente a Faculdade sem perceber a vinda de um automóvel. Automóvel, era assim que nos referíamos ao carro. Não deu outra, foi colhido e arremessado no asfalto. A queda de mal jeito foi fatal. Quando correram a socorrer o pobre professor, ele já partira dessa para melhor. A morte foi instantânea. Melhor assim, pensaram alguns, ele não sofreu, sequer percebeu o que tinha acontecido. Nós, infelizmente, temos a péssima mania de mitigar a morte em razão da violência de sua ocorrência, como se isso fizesse alguma diferença. “Morreu como um passarinho” dizem alguns, como a justificar uma morte boa! Ora, morte é morte, e pronto! Morreu, acabou. E foi assim, o Deco acabou.
Passado o choque inicial, a família cuidou das tratativas para o enterro. Escolheram caixão, o terno que o falecido iria usar. Providenciaram um terço para colocar nas mãos do Deco, mesmo sabendo que ela não era lá muito de religião.
Tudo arrumado, o corpo seguiu da funerária para o velório, em uma perua. Perua, naquela época era o que hoje chamamos de SUV. O caixão foi alocado na parte traseira do veículo e seguiu o caminho.
O trânsito, naquela época, não era dos maiores. A aventura dos carros ainda se iniciava. As ruas eram estreitas e a sinalização bem rudimentar, precária.
Por coincidência, o veículo funerário deveria passar em frente à Faculdade. Alguns alunos e funcionários foram avisados e, perfilados, iriam prestar a última homenagem ao querido, mas avoado, professor.
Tudo seguia bem naquele início de tarde, até que um motociclista cruzou à frente do veículo que antecedia à camionete da empresa funerária. Foi uma fechada só. Para não bater, o motorista desviou o volante todo para direita e acabou se chocando com um poste.
Com o impacto da batida, a porta traseira se abriu e lá foram Deco e o caixão parar no meio da rua.
Logo em seguida vinha outro veículo que acabou por não conseguir se desviar e chocou-se com a caixa de madeira e o corpo do pobre coitado do professor.
A comoção foi geral, porque tudo isso aconteceu exatamente no mesmo local em que Deco fora atropelado, no dia anterior. As pessoas se apressavam a ajudar, recolhendo os pedaços da tênue madeira, das flores e o próprio corpo do professor. Colocaram tudo na traseira do carro funerário e trataram de fechar a porta, para impedir que a população curiosa se deleitasse com aquele quadro amargo.
No meio daquela balbúrdia toda, e ainda à espera de que outro veículo fosse enviado para o transporte do defunto, não só transporte, mas reacomodação do corpo em um novo catre, uma das secretárias da Faculdade jura de pés juntos, até hoje, que ouviu seu Manoel, o homem do carrinho de pipocas que ali ficava, dizer, com os olhos apertados:
– Oh dó, seu Deco morreu duas vezes!
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Seu Manoel descreveu certo,Deco morreu duas vezes. Que tristeza!!