Ontem eu vi um amor.
Ontem eu vi um amor morrer. Antes de alcançar a maturidade, ressecou. Foi como botão de rosa que não se abriu, como um aborto prematuro, pereceu jovem, plantado em terreno árido, sob os escombros da revolução. Deixou um gosto amargo na boca, o peito esfolado e o vazio incompleto.
Antes se queriam sem reservas e a todo momento, como se querem os amantes em pleno calor da paixão. Ela o teria em sua vida a qualquer custo e de qualquer maneira. Eles não sabiam de si. Haviam se perdido no infinito do outro. Ela perdoou tanta coisa que se cansou do inconcebível. Ele, na busca de aventuras, foi impulsivo. Ontem eles eram amantes. Hoje não são nem mesmo amigos.
Ontem eu vi um amor germinar na cicatriz que não mais dói. Há resquícios do vivido e uma história a se cuidar. Houve mudanças de parâmetros. Abandonou sua autoimagem, despindo-se de antigas referências. Descobriu a beleza e o prazer de se misturar as tintas. Foi multicor. As variantes pálidas do branco, os azuis límpidos dos céu e do mar, os brilhos do ébano negro. Aprendeu que se faz além. Construções do real a partir das experiências não testadas e não vividas. Consciência possível do existir e do imaginar. Versões limitadas e limitantes da emoção.
Ontem eu vi um amor nascer, sob o brilho dos raios de sol que se punham com o cair da tarde. Imagem congelada a ser repetida lentamente na memória quando o instante se dissipasse. O amor nasceu junto com a necessidade de conhecer a realidade alheia, da admiração desprovida de idealizações. Veio sem cinto de segurança ou guarda-chuvas. Veio como curiosidade das incongruências perambulantes. As sementes brotaram, cresceram autênticas, no sopro de um desabafo. Um amor excessivo, atento e prestes a transbordar, que ainda carrega a ilusão de unidade.
Ele chegou tímido, mas na hora exata. Já não era cedo, nem muito tarde. Como todos os outros amores, trouxe vitalidade, luz, alegria, suor e lágrima. Ele espera por um banho de cachoeira e uma tempestade de meteoros. Ele acontece na esquina da maturidade, no frescor do perfume novo, na interação das escovas de dente e no sabor suculento do abacate.
Como é bom sentir e não pensar. Como é bom dançar no ritmo do vento, incorporando na vida as possibilidades de um mundo etéreo. Heterofagia. Como é bom fingir que nada está acontecendo e esconder-se na alienação das coisas sem importância.
Ontem eu vi um amor a rodar. Ontem eu vi um amor a rodar na roda viva da vida, nos ciclos complexos e necessários do partilhar.
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