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De bicicleta

Peter Rossi

Dias desses, sabe-se lá por qual motivo, me peguei a recordar da minha primeira – aliás, única, bicicleta.

Uma Monark Olé 70, de um azul brilhante. Era tudo o que eu queria, muito mais do que imaginava.

Àquela época, tinha a absoluta certeza que veio dentro do saco de presentes do Papel Noel ou, na pior das hipóteses, ele veio montado nela.

Era linda! Os pneus, então, tinham um cheirinho tão bom … E vinha com um banco macio e branco e, debaixo dele, uma bolsinha de ferramentas com chave de roda, borracha e cola. Era demais!

Passei a me lembrar dos passeios, aventuras, de quantos mundos conheci e tantos outros imaginei, em cima daquela “magrela”.

Os anos se passaram e todas as bicicletas com as quais tive algum contato foram as que dei aos meus filhos. Pude observar, entretanto, que jamais houve paixão na relação entre eles e os brinquedos. Andavam aqui e ali e, em poucos anos, ficaram encostadas “num canto qualquer”, como diz a poesia.

Comigo não! Foi absolutamente diferente! Era apaixonado por minha bicicleta, que dormia em meu quarto, ao lado de minha cama. Não me dava conta, entretanto, que todo esse amor era pelo mundo que ela me permitia descobrir.

De bicicleta fui até a Rússia, o nome de qualquer lugar, um pouco mais longe de casa, ao qual nunca tinha ido antes. Quando o passeio era mais distante chegava na China.

Ah, que saudade …

Tenho curiosidade em saber se minha antiga bicicleta, hoje com nada mais, nada menos, quarenta e sete anos, está bem. Se alguém lhe dedica a paixão que sempre dediquei …

Me dou conta, à essa altura, que não me lembro de nosso último encontro. Nem sei se aconteceu algum beijo de despedida. Engraçado, disso não me lembro. Tenho frescas em minha memória lembranças especiais de minha infância no lombo daquela parceira, mas de sua saída de minha vida, nada consigo recordar.

Me vem em mente o cheiro do vento fresco que insistia em bater no meu rosto e eu, de boca aberta, queria engolir numa só onda de ar toda a felicidade do mundo. 

Me lembro de descidas emocionantes e subidas nem tanto, movidas a suor e empurrões.

Minha bicicleta e sua garupa. A garupa e os amigos, aqueles com quem dividia corridas inimagináveis, pedaladas de levantar poeira, curvas fechadas e tombos, muitos tombos.

É uma pena que hoje as bicicletas perderam o brilho de antes. No seu lugar ficam as imagens virtuais, nada mais que isso.

Se pudesse voltar atrás, viveria toda essa emoção mais uma vez. Subia na Monark e daria a volta ao mundo … Pedalava de maneira tal até atingir a próxima estradinha de terra. Aliás, nem estradinha precisava ser, bastava uma trilha pequena, uma picada no meio do mato. Faria todas as curvas, freava a ponto de arrastar o pneu, pedalaria em pé, pois dava, comprovadamente, mais força na tocada.

Refaria todos os passeios só prá contemplar um minuto que fosse aqueles sonhos que insistia em sonhar. Aquele olhar perdido que nada mais fazia do que se extasiar com o que via. E também com o que não via, mas se podia imaginar.

Minha bicicleta, por onde anda? Quanta saudade! Quanta vontade de te rever!

Me lembro, agora, que os punhos do guidão eram brancos e dele saiam umas franjas que só faziam voar quando corríamos. Eram como um verdadeiro velocímetro a me mostrar que estava solto, viajando acima da velocidade do som.

Aliás o som que ouvia era o vento passando ao lado, suspirando por não conseguir nos alcançar.

Fico a pensar porque tantas vezes me lembro disso. Não foi uma relação mal vivida, muito ao contrário, foi uma paixão intensa, sem traições, desvios, de mútua atenção e entupida de carinho. Não consigo mesmo entender.

Fico pensando e pensando. Por qual razão esses fatos não me abandonam?

Vai ver é que ponho prá fora esse infinito desejo de voltar a ser criança ou, como diz o poeta, reconhecer que nunca envelheci, apenas descuidei de coisas pequenas, na triste ilusão de que passariam desapercebidas.

Vai ver que é porque ainda mantenho a vívida esperança de reencontrar a minha bicicleta e, abraçado nela, mais uma vez dar a volta ao mundo.

Vai ver que essa saudade que me atormenta é a clássica dor de cotovelo, por não me lembrar com a exatidão da felicidade dos momentos vividos, me deixando, somente, o sabor de que foi bom, muito bom.

Vai ver que se trata de uma paixão mal resolvida, daquelas que volta e meia insistem em povoar nossos pensamentos.

Vai ver que a bicicleta azul, brilhante, ainda com cheiro de pneu novo, apesar de tantos anos, nunca deixou de estar ao meu lado. Continua ali, parada. Ao lado da minha cama. Esperando quieta e silenciosa a próxima manhã chegar.

*
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