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Do cinza à escuridão

Mentes prolíficas, a todo tempo criando, arquitetando e se inquietando contra tudo e contra todos, me interessam. Jô Soares padecia desse tipo de inteligência compulsiva. Quando já era dono de um patrimônio intelectual, tendo criado alguns dos mais marcantes personagens do humor brasileiro, inaugurou um formato de programa na tevê brasileira, que já era sucesso nos Estados Unidos: o talk show. Em 28 anos de labuta nesse modelo de programa realizou nada mais, nada menos, que 14.138 entrevistas, todas elas, de alguma forma, interessantíssimas, porque o entrevistador sabia arrancar do entrevistado tudo o que tinha de valor.

Nesse meio tempo ainda escreveu livros, peças de teatro, publicou artigos e charges em jornais, dirigiu, editou, produziu, compôs, ufa!, e ainda teve tempo de tocar bongô.

Todavia, entre todos os produtos de sua mente fecunda, o que mais me cativou sempre foi a escrita. Dono de um texto pra lá de apetitoso, escreveu romances policialescos, cheios de mistério, destacando-se por sua especialidade: criar assassinos em série inesquecíveis. É o caso do assassino de “O Xangô de Baker Street”, que, após matar, enrolava uma corda de violino Stradivarius nos pelos pubianos de suas vítimas. Não menos excêntrico é o assassino de “As Esganadas”, que mirava apenas mulheres gordas, usando como arma o quê? deliciosos quitutes portugueses.

Nesses últimos meses, o incansável Jô estava trabalhando em mais um romance policial, desta vez, envolvendo os misteriosos assassinatos de moradores de um prédio inteiro. Espero que alguém publique a obra inacabada. Não vamos nos importar em jamais descobrir quem foi o assassino no final, que nunca será escrito.

É claro que Jô Soares é uma das minhas principais influências na escrita. Porém, basta ler meia dúzia de textos assinados por mim no Mirante para perceber que o meu estilo é muito mais afeto ao horror do que ao humor. O que significa dizer que, diferentemente dos humoristas, meu universo é predominantemente cinza. Apenas três humoristas já conseguiram bagunçar essa ordem monocromática com um pouco de cor: Groucho Marx, Woody Allen e, claro, Jô.

Hoje, sexta-feira, quando soube da morte do Jô, tudo ficou ainda menos colorido, menos interessante, menos suportável e até menos gordo. Mais do que uma perda para a cultura brasileira, uma perda pessoal, um mundo particular sucumbido em cinza.

Ps. Caro Woody Allen, como sabemos Groucho Marx há muito se foi. Agora, o Jô. E o senhor, no alto de seus 86 anos, aguente firme. Afinal, do cinza à escuridão, basta mais um apagão.

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