Todos os dias depois do expediente, Raul tomava três chopes com os colegas de trabalho. Às vezes, os rapazes se entusiasmavam, e a bebedeira ia até a quinta rodada. É nesta hora que Raul escutava aquela voz. (Só mais um gole, Raul. Você consegue, cara!) Então ele se despedia dos colegas, dava uma volta no quarteirão e, certificando-se de que os outros foram embora, voltava para o bar, onde bebia até cair. Não demorou para o chefe de Raul começar a perceber o bafo de bebida, os olhos inchados e a camisa amarrotada com que o funcionário chegava para trabalhar. Resultado: rua. Desempregado é que as coisas saíram do controle. (Não se chateie, Raul. Agora você é um homem livre!) (Isso não merece um gole?) A esbórnia começava quando a outra terminava. Acordava bêbado, não escovava os dentes, mas usava Listerine — com álcool. Cuspia um pouco só para enganar a si mesmo, pois engolia o resto. Preparava o café com uma dose de conhaque. Ele podia garantir que o hábito servia para limpar a garganta. Então ele limpava a garganta quinze vezes ao dia. (Ah, que alívio, Raul! Melhor que bala de menta). Enquanto ainda estava razoavelmente sóbrio, ele arrumava um jardim para aparar aqui, um carro para lavar ali. E segurava o seu instinto autodestrutivo até às três da tarde. Então, não conseguia mais. Gastava o primeiro trocado com uma lata de cerveja. À medida que o dinheiro ia acabando, a bebida ia aumentando em seu poder de destruição: uísque barato, vodca sem rótulo, sobras de conhaque. Ao fim da tarde, Raul estaria virando cachaça. (Não seja tolo, Raul! Dá próxima vez, comece pela cachaça!) No auge do seu declínio, Raul chegou a pesar 45 quilos. Não comia, não tomava água e, pela boca, só entrava cachaça. Ele ainda não sabia, mas uma úlcera se formava em seu estômago. Apesar de dores, desmaios e palidez, Raul achava que estava tudo bem. Até que começou a regurgitar sangue. (Calma, garoto… É só uma indigestão… Mais um gole e tudo ficará bem!) Mais um gole e outros também. Assim Raul foi tornando-se cada vez mais íntimo da Morte. Foi quando começou a sentir movimentos anormais dentro da barriga, que Raul percebeu que havia algo muito, muito errado. Certa feita, Raul mal conseguiu tomar o primeiro gole de pinga, sem antes ser tomando pela sensação inusitada. Então ele cambaleou até o banheiro, abraçou a privada e pôs para fora o que estava lhe perturbando. Ao conferir o vaso, Raul notou sangue, bile, cachaça. E, no meio daquele caldo hepático, estranhas criaturas vermelhas nadavam, como pequenos girinos. Raul pensou que estava delirando e aproximou o rosto do vaso. Foi então que pôde identificar uma centena de diabinhos, com rabos e chifres, dando braçadas, mergulhando e flutuando em seu vômito. Algumas miniaturas tentavam escalar a parede lisa do vaso sanitário, mas acabavam escorregando de volta para o fundo da privada, o que disparava uma explosão de risadinhas agudas entre eles. Em um momento, Raul chegou a ouvir um deles: (Venha, Raul! Junte-se a nós. Aqui dentro tem um litro de cachaça — e sangue… Depois, o convite se tornou um coro de cem vozes hediondas: (Venha!) (Venha!) (Venha!) Encantado pelas criaturas, Raul se inclinou ainda mais em direção ao vaso. Quando estava prestes a encostar o rosto na água emporcalhada, ele parou. Ergueu a cabeça e apertou a descarga. Os diabinhos centrifugaram na privada, enquanto proferiram uma série de impropérios e profanações. E, depois, sumiram. Desde então, Raul nunca mais sentiu vontade de beber.
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