“Parabéns, Senhor Abreu!
É um menino!
E já tem bigodes!”
Nos anos 1980, meu sonho era ser Zelda Scotch, a jornalista bígama do seriado infanto-juvenil Armação Ilimitada. Sim, os anos 1980 eram um tempo que comportava papai de terno e mamãe de bobs na mesma sala em que a garotada assistia um programa de tv protagonizado por uma garota casada com dois surfistas gatos e mãe adotiva de um garoto lindo, livre e feliz. A gente estava mergulhado em uma crise econômica talvez pior do que esta que vivemos hoje, mas a gente tinha esperança.
Nesta última semana, a voz de Evandro Mesquita parabenizando o Senhor Abreu na introdução da música Eugênio ecoou na minha cabeça em vários momentos. Eu pensava na felicidade da Senhora Abreu se vivesse neste estranho 2022, em que voltamos a apedrejar mulheres em vez de normalizar Zeldas Scotch. “Ser mulher não está nos planos de ninguém”, canta a garota que viralizou semana passada no Tik Tok.
Ninguém deseja ser mulher, como ninguém faz planos de ser negro ou de desejar pessoas do mesmo sexo. Podendo escolher, ninguém escolhe ser alvo. Chama-se instinto de sobrevivência. Tem quem diga que a gente faz essas escolhas em outro plano, mas prefiro me ater a este porque é o único sobre o qual todos concordamos. Cá estamos. Nós e as nossas circunstâncias. E, até que me provem o contrário, nascer mulher não foi uma escolha.
Mais de 35 mil crianças foram estupradas no Brasil apenas no ano passado. Oitenta porcento delas eram meninas.
“Parabéns, Senhor Abreu!
É um menino!”
Quase a metade dessas crianças tornaram-se mães dos filhos de seus estupradores. Todas meninas.
“Parabéns, Senhor Abreu!
É um menino!”
A menina que aborta o fruto de um estupro é uma assassina.
“Parabéns, Senhor Abreu!
É um menino!”
A menina que leva adiante a gravidez de um estupro e dá a criança em adoção comete “abandono de incapaz”.
“Parabéns, Senhor Abreu!
É um menino!”
A mulher que denuncia o colega de trabalho que ameaça outra colega é espancada dentro da repartição pública. “Ele estava fora de si.”
“Parabéns, Senhor Abreu!
É um menino!
E já tem bigodes!”
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