As luzes dos postes se acendem lá fora, e o gato Poe começa a se agitar. Devora o pires de uma gororoba que fede a peixe podre, alonga o seu corpinho esguio, mia para dizer que é dono de si mesmo e pula a janela. É hora de cair na noite.
A última vez que saiu de casa, passou dois dias e três noites sem dar notícias. Pensei que nunca mais o veria. Eis que de repente surgiu pela mesma janela em que costumeiramente foge, me olhando com aquele jeitão atrevido de quem só saiu para tomar um arzinho, mas que resolveu esticar por madrugadas adentro. E pior: tinha as garras sujas de sangue.
Briga, pensei. Da mesma forma que ele podia ter arrancado sangue de outro gato, da próxima vez, podia ser ele a sangrar. Decidi então pôr um fim em suas andanças noturnas. Instalei um chip nele. Agora aonde o gato Poe for, o GPS do meu celular saberá.
Até deixei a janela aberta para ele fugir na última noite. Não via a hora de testar a engenhoca implantada sob a pele felino fujão. E como o sono não me vinha, passei horas monitorando o pontinho preto que vagava no mapa projetado na tela do meu celular. O pontinho preto, é claro, era o gato Poe. E o gato Poe estava mais perto do que eu podia imaginar.
Já fazia uns trinta minutos que o indicador no mapa mostrava que ele estava imóvel na área em que ficava um terreno vazio ao lado da minha casa, onde só os moleques mais valentões da rua se arriscam a entrar. Mas o que diabos o gato Poe estaria fazendo parado lá? Estaria ferido? Ou apenas cochilando? Alcancei uma lanterna no fundo da gaveta e resolvi ir até lá.
Era uma pequena propriedade cercada por muros altos. Um mato alto e descuidado preenchia todo o local, o que passava a impressão de abandono. Havia um portãozinho de acesso trancado apenas pelo ferrolho, de modo que entrei sem dificuldades. Lanterna numa mão e celular sintonizado no GPS na outra, em poucos minutos eu havia percorrido por todo terreno. E nada de encontrar o gato Poe. Inclusive, chequei o mapa, e eu estava exatamente em cima do pontinho preto. A menos de um metro adiante, avistei uma espécie de fosso, que parecia uma toca de rato. O que me levou a concluir que eu estava mesmo em cima do ponto preto, e o gato Poe, abaixo de mim. Ele estava no subsolo.
Agachei-me diante do fosso e rastejei em direção ao seu interior. Após uns dez minutos de descida, alcancei o subsolo. Quando lancei a luz da lanterna contra a escuridão que me engolia, uma enorme galeria com vários caminhos diferentes se abriu diante de mim. Havia gatos por todas as partes. Gatos pretos, gatos pardos, gatos albinos, toda sorte de gatos. Eles me encararam, como se pudessem me intimidar. E podiam mesmo, pois àquela altura eu já estava me arrepiando de medo. Mas ainda assim segui em frente. Olhei o mapa no celular e confirmei que Poe não estava longe. A uns dois ou três desvios para a direita e uma guinada à esquerda eu pegaria o meu gato e o levaria para casa. Abri caminho entre os bichanos mal-encarados e comecei a seguir o ponto preto no mapa. Foi quando dobrei a última direita que me dei conta de que tudo o que havia adiante era uma parede de concreto. Eu havia entrado em um beco sem saída.
Quando dei um passo para trás, percebi coisas estalando sob os meus pés. Então a luz da lanterna me mostrou tudo o que eu jamais quis ver. Eu pisava em crânios humanos e restos de esqueletos. Para piorar, um bando de gatos dobrou o corredor e começou a vir em minha direção.
Encostei-me à parede de concreto e fechei os olhos. Gritei de dor quando senti o primeiro arranhão. Depois vieram as mordidas. Um monte delas. Senti-me em um lago infestado de piranhas. Em poucos minutos, os gatos teriam me devorado vivo, não fosse uma sombra mais escura que a escuridão que passou por entre eles, como um vulto veloz. Era o gato Poe.
Protegendo-me contra os agressores, Poe soltou um rugido que ressoou por todas as galerias daquele labirinto infernal. O bando de gatos se dispersou e pude seguir o caminho de volta, sendo conduzido pelo meu herói de bigodes até a saída do fosso. Poe ficou olhando para mim enquanto eu me agarrava a raízes e escalava de volta à superfície. Quando consegui emergir, Poe se voltou para os seus assuntos de gato e sumiu na escuridão do buraco.
Fui para casa cuidar dos ferimentos e ainda consegui dormir um pouco. Na manhã seguinte, o gato Poe surgiu na janela, com a mesma cara de sem-vergonha, como se nada tivesse acontecido na madrugada anterior. Eu, no entanto, não me esqueço dos momentos que passei naquele maldito fosso e da lição que pude tirar deles: jamais procure saber para onde os gatos vão à noite.
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