Osvaldo e Vânia viviam uma vida simples e feliz. Márcia, a filha única, acabara de se formar em magistério, seria mais uma professora, seguindo a tradição das mulheres da família.
Osvaldo, após quarenta anos na Rede Ferroviária Federal, gozava agora de seu merecido descanso. Vânia, a quem todos chamavam de Vani, também se aposentara. Lecionou por mais de trinta anos na rede pública estadual, agora se dedicava aos seus quitutes e aos cochilos com o marido.
Tudo ia bem, muito bem, até que numa tarde quente de domingo, Márcia trouxesse para casa um rapaz de nome Pedro João. Queria apresentar para os pais o seu namorado.
A surpresa se desdobrou, Osvaldo e Vani não entenderam aquela pressa toda.
– Minha filha, quem é esse moço? Onde você o conheceu?
– Mãe, ele é primo de uma colega minha do colégio. Não é bonito?
– Não é não, filha! Além do mais, muito mais velho que você e com aquele bigode todo ensebado!
– Para com isso minha mãe, ele é muito bom homem e além do mais é chique, ele é português! Minhas amigas vão morrer de inveja.
Osvaldo, que deixara o rapaz na sala com a desculpa de buscar um copo de água, só fez complementar a conversa de mãe e filha na cozinha:
– E além de tudo isso, tem o nome invertido? Eu heim? Pedro João! O certo não seria João Pedro? Agradei dele não, filha.
– Vocês estão muito rabugentos, vamos voltar para a sala, senão ele desconfia.
Certo é que Márcia e Pedro João engataram o namoro, pra tristeza de Osvaldo e Vani. Apoiavam a filha em tudo, mas felizes, não estavam não.
– Osvaldo, esse moço está namorando nossa filha faz quatro anos e não toma nenhuma iniciativa. Aonde isso vai terminar?
– Minha linda – Osvaldo sempre cuidava de chamar Vani assim, até porque a achava maravilhosa, desde sempre – uma hora isso se resolve. Percebo que Márcia não tem mais a mesma paciência.
– Qual o quê, Osvaldo, parece que não enxerga um palmo à frente do nariz. Nossa filha está apaixonada.
A vida seguia, como sempre segue, alguns domingos mais quentes que outros, uns dias de chuva, e Pedro João sempre por lá.
– Ora pois, minha sogrinha. As coisas, como vão?
– Bem Sr. Pedro João, bem.
– Acho que já passou da hora de me chamar pelo nome. Já somos íntimos, pode me chamar de meu genro, não vou importar.
O homem não percebeu, mas Vani fazia o sinal da cruz em frente ao rosto e se resignou a dizer:
– Está bem.
Mas fato é que jamais chamou o rapaz de meu genro, até porque aquela era uma situação com a qual não comungava.
Certo dia, voltando da feira, Vani comentou com uma vizinha que não conseguia mais conviver com tudo aquilo.
– Olha, vou te ensinar uma coisa. Você faz uma comida bem gostosa, aquela que você sabe fazer melhor e deposita em cima de uma sepultura, dentro do cemitério, à meia-noite. Num papel coloca o nome do infeliz que você quer que suma. Não dou trinta dias e ele estará longe. Ensinou D. Juvência.
Voltando para casa contou tudo ao marido e os dois combinaram que a comida seria feita na sexta-feira seguinte. Osvaldo se encarregaria de levar a prenda até o cemitério e lá deixa-la.
A sexta chegou e Vani estava a preparar um lombo de porco maravilhoso, daqueles que fazia só em ocasiões muito especiais e que toda a família só elogiava.
Enquanto isso, Osvaldo fora jogar truco na venda em frente. Sentado, só de calção e camiseta, com as cartas na mão e alguns copos de cerveja, contou a história a Tomás e Libânio. Naquela noite iria entregar um despacho no Cemitério da Saudade. Os amigos se convidaram e após um brinde sonoro, combinaram se encontrar em frente à casa de Osvaldo, por volta de onze e quinze da noite.
O lombo ficara pronto por volta das oito horas. Estava lindo, com rosas de abacaxi em seu entorno, e no centro de cada uma delas, uma ameixa preta.
Vani não poupou em nada. Quanto mais lindo e saboroso ficar, melhor será o resultado, pensava ela. Depositou tudo em uma bandeja grande, tapou com um pano de prato. Por volta das quinze pras onze voltaria com a carne ao forno, apenas para esquentar.
Assim foi feito. Às onze horas tratou de acordar Osvaldo.
– Homem, acorda! Já está quase na hora de você levar a encomenda. – Osvaldo, numa ressaca daquelas, correu pro chuveiro, na esperança de despertar por completo.
Onze e quinze, e lá estavam Tomás e Libânio, esperando por Osvaldo que logo chegou ao portão, equilibrando uma bandeja enorme. O cheiro do lombo preencheu todo o ambiente.
Seguiram até o Cemitério da Saudade, no Pálio Weekend de Tomás. Lá chegando, cuidaram de colocar o lombo sobre a primeira sepultura que encontraram e foram embora.
– Vamos tomar uma, convidou Libânio? Vani deve estar dormindo já, Osvaldo, vamos lá!
Foi quando Tomás teve a infeliz ideia:
– Pessoal, eu estou faminto, não sei vocês. Mas acho que o melhor é a gente buscar aquele lombo da Vani – ninguém faz um igual – e comprar umas cervejas. Essa história de despacho é balela e ela nunca vai ficar sabendo. É um desperdício deixar aquela iguaria maravilhosa!
Dois minutos foram suficientes para que todos concordassem e lá foi Osvaldo buscar a encomenda. Ainda bem que nenhuma entidade chegou a tempo de comer, ele pensou.
Desceram a ladeira e àquela altura da noite, só encontram um boteco daqueles mal arrumados, que costumamos chamar de “copo sujo”. Os três desceram com a bandeja e lá dentro se juntaram a outros que ali estavam. Todos beberam e comeram até as três da manhã. Do lombo, sequer uma ameixa sobrou.
– Estamos combinados então, né? Deixamos o lombo no cemitério e fomos prum restaurante perto da Praça Raul Soares! Disse Osvaldo.
– Isso mesmo! Combinado!
Na manhã seguinte Vani perguntou a Osvaldo como fora a empreitada.
– Tudo certo, minha linda. As entidades devem ter se esbaldado.
– Graças a Deus, Osvaldo, agora é só esperar os trinta dias e o tal português, se Deus quiser, estará do outro lado do oceano.
– Isso mulher, isso!
Outros oito anos se passaram. Já eram doze de namoro e a presença do Pedro João na casa, todo final de semana.
– Sabe Osvaldo, nunca mais eu vou acreditar nessa história de mandinga. Esse desafortunado desse homem não desgruda de nossa filha. Que arrependimento de ter feito aquele maldito lombo. Não deu nada certo.
– Esquenta não, minha linda. Deus é mais! Quem sabe você não faz outro prato? Vai ver a entidade não gostava de carne de porco, né? Vai saber…
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Já estava com saudade das crônicas de João do Rio quando fui "quase" surpreendido pelo instigante texto publicado no blog Mirante.
Uma história em tom de blague onde o humor da narrativa se associa ao espírito irreverente de personagens que podem até ser tocados de tão reais que são.
Diálogos em crônicas como essa são de difícil condução, mas não aqui, onde uma fluência coerente lhe empresta veracidade, como se dela fôssemos igualmente personalidade.
Como não sou crítico literário, é como leitor que aplaudo a criatividade da autora de um gênero literário que parecia esquecido desde os tempos de Rubem Braga.