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Sem a prancha

Peter Rossi

A gente pensa que vai voar mundo afora. Ilusão pura! A gente não consegue simplesmente porque não sabe aterrissar. Não temos paraquedas, aliás, não temos jeito com mochilas. Quando muito carregamos pastas de alça curta, com as mãos.

Imaginamos os jeans como a última volta do relógio da juventude. Não tínhamos GPS, dobrávamos mapas de papel e com riscos de caneta Bic alinhavávamos as possibilidades de chegada. 

Os jeans hoje são rasgados, ignorando propósitos formatados. A vida hoje transborda a forma, mas engordamos e insistimos em fermentar como um suflê. 

E nessa nos vemos fora da forma, sem paraquedas e sem noção da altura, afinal aqueles prédios subiam somente até o quinto andar. 

Mas seguimos firmes, e o que é melhor, soltos! E por puro deleite, sem a menor noção de que temos bigodes e narizes acostumados a farejar a felicidade, em simples margaridas com um sol no meio e vários sonhos de natas ao redor.

Entender a vida a essa altura é passar o filtro solar do Bial e sorver o sorvete que a nossa meninice não deixa esquecer o sabor. 

A gente não pula mais as ondas, surfamos na areia, sentados numa cadeira de praia, com um copo de cerveja na mão e os olhos atentos aos sonhos que já vivemos. E aí sim a gente sonha, surfa e pula ondas. Nossos castelos de areia ainda estão lá. Indeléveis, herméticos, retráteis, versáteis. 

Nossa prancha é estática em razão das curvas indevidas do corpo, mas ainda surfamos! Com bandanas a prender os cabelos que não temos. E as mechas de nossa infância jamais se esbaldariam aos ventos como hoje. Vida sarcástica: dá o vento e tira os cabelos; prorroga as ondas e quebra a prancha. Vida enigmática: nos convida a ver o que os óculos escuros da juventude não conseguiram, e que a catarata não nos permite mais. A vida nos dá muletas, mas são invisíveis, demoramos a perceber que só com os olhos fechados conseguimos entender aonde estão. 

Viver é isso, hoje conseguimos captar a mensagem, como diz o comediante. É juntar todas essas peças que colecionamos ao longo do tempo, espalhar em cima da mesa e num último ato de coragem empinar a coluna e, agarrados no lustre, ter uma visão diametral, inclinada, oblíqua, verdadeira, torta de ver, mas reta de sentir. 

A vida é assim, um planalto inclinado, um acaso assustado, aquele sol morno que nos cobre as pernas e nos permite acordar sempre caminhando.

Somos eternos surfistas, já falei, ainda que sem prancha, afinal não foi ainda fabricada alguma que suporte nossos excessos de gomos e de peso.

Nossas tatuagens não resistem sequer a um lenço umedecido. Aquelas letras tortas, as figuras enigmáticas se vão, como num passe de mágica.

Mas não perdemos nenhuma onda, ainda que sentados na areia. Nossos olhares sobem na prancha e lá de longe desaguam na praia, quase a esbarrar na menina de biquini minúsculo que por ali desfila.

O mais interessante disso tudo é que sempre fizemos assim: pulamos sem o paraquedas, surfamos sem a prancha, prendemos a bandana na calvície e ajeitamos o jeans em nossas gorduras, mas fomos felizes, e como fomos!

Sem a mínima noção do perigo, do qual hoje temos absoluta certeza da existência, nos permitimos desfrutar do sonho, como se fosse um dia qualquer, numa praia qualquer, num lugar qualquer … A vida começa mesmo todos os dias, seja qual for a maré, quais forem os ventos, o tamanho das ondas, o copo de cerveja, a cadeira enfiada na areia; nossos olhos estarão lá, eles sempre estão. E que não interrompam! Viva a vida! Como ela for!

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