Dois ovos mexidos são indispensáveis no café da manhã de Décio. Ele apanha sempre os mais graúdos na porta da geladeira, quebra a casca na quina da frigideira e despeja clara e gema na manteiga quente.
Foi justamente ao quebrar o ovo pela manhã que Décio quase morreu de susto. Lá dentro não havia clara nem gema, mas um filhotinho de réptil. Isso mesmo: um filhotinho de réptil.
Seria assustador se o bichano não fosse adorável.
Tinha dois olhos enormes com pupilas em forma de fendas, como as de uma serpente, mas tão dóceis como as de um Labrador. O filhote bateu na panela quente, soltou um rugido de dor e pulou no ombro de Décio, onde se aninhou.
Ali, houve uma empatia imediata entre os dois. Uma longa e estranha amizade se iniciou.
Nas semanas seguintes, Décio acomodou o pequeno réptil na gaveta de camisetas velhas. Mas, todas as noites, o bichano se esgueirava para a cama de Décio. Aconchegava-se ao lado dele, como um cachorrinho preguiçoso. Nas manhãs seguintes, era comum Décio acordar com pequenas escoriações, ao que ele atribuía ser resultado do contato entre pele humana e escamas de réptil.
À medida que o bichano ia crescendo, a amizade entre os dois ia se tornando mais consistente. Quando atingiu o tamanho de um filhote de jacaré, o reptiliano passou a ser chamado pelo carinhoso nome de Lagartinha e já ocupava metade da cama de Décio.
Outro dia, Décio acordou sem uma falange dos dedos, ao que ele atribuiu ser resultado de uma mera brincadeira de reptiliano. Só quando perdeu um dedo inteiro é que percebeu que não se tratava de brincadeira, mas de refeição.
O amor de Décio pelo bichano era tão grande que ele não se importou. Daria uma mão pela companhia de Lagartinha.
E assim se sucedeu.
Décio perdeu a mão esquerda e dois dedos do pé direito em uma só noite. Enquanto isso, Lagartinha crescia, e crescia a fome de Lagartinha.
Em um mês, Décio se tornou um homem inválido. Braços e pernas já haviam servido de almoço e jantar para Lagartinha. Mas Décio sabia que ele podia mais, sabia que um bom tutor faria de tudo pelo seu animalzinho de estimação.
Foi quando Décio já havia sido reduzido a uma aberração, que ele conseguiu reunir forças para se colocar sentado na cama e chamar pelo seu amado filhotinho. Neste instante, Lagartinha, que já assumira a forma de um iguana do tamanho de um bezerro, subiu lentamente na cama e abriu uma enorme boca com centenas de dentes pontiagudos, enfileirados como os dentes de um serrote.
Antes de sentir os dentes afiados se fecharem contra o seu pescoço, Décio teve tempo de se preocupar com Lagartinha, pois aquela, fatalmente, seria a sua última refeição.