Vejo a noite ficar mais escura à medida que as horas vão passando. Depois, o inverso. Às 8 da manhã, o dia está claro suficiente para machucar os olhos de quem varou madrugada adentro, trabalhando em uma lojinha de merda, dentro de um posto de gasolina 24 horas, igualmente, merda.
É hora de ir para casa.
Parece que o corpo humano não foi feito para ficar acordado na hora de dormir e dormir na hora de ficar acordado. Você bate na cama, sente um cansaço desumano, mas a mente não desiste de pensar. Uma espécie de limbo entre a consciência e a sonolência é onde habito, entre às 8 e meia da manhã até as 4 da tarde — e, acredite, esse local em nada se difere do primeiro ciclo do Inferno a que se refere Dante Alighieri, onde almas vagam, sem destino, na escuridão. Ou melhor, semiescuridão, já que minhas cortinas estão puídas pelo tempo e, lá fora, brilha o sol.
Minha alma vai vagando, vagando até encontrar o primeiro miado fino e estridente de Poe, o gato, ah!, sempre ele, o gato. Levanto irritado, tomo um banho morno, mastigo um analgésico (a essa altura a enxaqueca já começa a cozinhar os meus miolos) e encho um pratinho de ração pastosa fedida a peixe podre, do qual Poe não abre mão.
Enquanto ele come, eu tento comer uma gororoba não menos desprezível do que comida de gato. Preparo aquilo que seria o meu café da manhã, se já não fosse quase 6 horas da tarde e faltasse menos de uma hora para eu retornar ao meu emprego de merda. Mas desta vez, Poe miava não porque estava com fome, mas porque queria sair pela janela e, talvez, caçar alguns pássaros no quintal. Abro uma fresta, e lá se vai o gato. Felizmente que se foi, vez que um só analgésico não bastaria para aturar o miado — reitere-se, fino e estridente — de Poe.
Foi quando me sentei no balcão da cozinha para comer, de frente para a janela por onde o gato havia escapado, que avistei o clarão. Não era relâmpago. Não eram luzes dos faróis dos carros, tampouco, um fenômeno natural. Era uma espécie luminescência de cor roxa, corporificada em uma neblina pesada e cintilante, que entrava pela janela, preguiçosamente.
O clarão púrpuro foi se tornando mais intenso, invadindo o interior de minha residência e até mesmo infiltrando em minhas narinas. Tudo estava roxo quando, de repente, um estrondo parecido com o ronco de uma turbina de avião, tomou de assalto os meus tímpanos. Um som curto, porém, pungente, como uma descarga elétrica, mas, repito, em nada se parecia com um fenômeno da natureza. No instante seguinte, como em um truque de mágica, a normalidade havia se restabelecido. Nenhum sinal de neblina púrpura — ou estaria tudo em minha mente, como na música de Jimi Hendrix? Certo é que tudo estava no lugar, ou seja, a bagunçado como sempre: louça suja na pia, meias e cuecas no tapete da sala, formigas disputando os restos da comida de gato.
Pensei que aquela visão de fumaça roxa, seguida de um barulho cósmico e indistinto, pudesse ser obra do analgésico possivelmente fora da data de validade ou efeito da privação do sono.
Foi quando Poe apareceu na janela da cozinha que percebi que os estranhos fenômenos eram, de fato, reais. O que o gato trazia em sua boca, exibindo como se fosse um troféu, não era um pássaro. Era uma criatura albina, coberta de escamas, com inúmero tentáculos que se retorciam à medida que o felino apertava as mandíbulas envolta daquele ser extraordinário. Na extremidade superior do seu corpo alienígena, projetava um único e enorme olho.
Um olho que olhava para mim.
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