Hoje jogo xadrez com a vida. Ouvi essa frase vinda da minha boca e me assegurei que tinha razão. É isso mesmo! Com o passar do tempo nos permitimos antever as próximas jogadas. Não saímos mais em disparada, como boi no pasto. Se, por um lado, não temos o prazer do vento frio em nossas orelhas, por outro, não corremos o risco de pisar em falso.
A vida é esse eterno aprendizado que muitas vezes passa até despercebido. Pelas experiências anteriores nosso íntimo ajoelhado simplesmente opta por ignorar. Aperta o botão do desapega e segue o rumo mais conveniente. Com isso, em determinadas ocasiões, deixamos de ouvir, de escutar e até de ver. Por consequência, mudos ficamos.
Nossas mãos movendo as peças sobre o tabuleiro e já pensando nas reações que vida nos jogará janela adentro. Aquele cansaço provocado pelo arrependimento dá lugar a novos pensamentos, pequenos, é verdade, pois a vida é diminuta, a partir do momento em que o estopim se queima. O cordão que nos liga ao mundo vai encurtando, não podemos mais nos dar ao luxo de experimentar desajustes. Agora é acertar e acertar.
Uma maneira de facilitar as coisas é aproximar o alvo. Essa é a questão, o mote da coisa. Coloquemos o alvo mais à altura das cataratas em nossos olhos e mesmo com as mãos trêmulas, aumentaremos a possibilidade de acerto.
Essa é a grande jogada do peão. Um passo de cada vez, passo contido, medido, estudado, coreografado até. O universo está ali, logo em frente. Aproximando os desejos, diminuímos a tensão dos espaços. A gente consegue, com um pequeno lápis de cor, preencher a figura toda, com calma e boa vontade.
Os trabalhos menores de pequenos nada têm. Apenas são alcançáveis com um simples esticar do pé. Nossos tendões e músculos já não são tão guerreiros assim, melhor não facilitar. Estiquemos os pés e logo a prateleira com os doces da vida surge à nossa frente.
Um sábio italiano diz que a vida se descompensa em sua própria divisão. A velhice é a melhor parte, pena que dura pouco! Mas não falo da velhice em si, falo da perfeita interação com nossas imperfeições. Não que nos perdoemos, essa não é a tônica. O que foi, aconteceu. Mas nossos sentidos estão mais atentos. A vida é mais amiga a partir do momento em que a entendemos melhor. E porque isso acontece? Simplesmente porque vivemos! Sim, viver é o melhor remédio, ainda que na ausência.
O não fazer, antes motivo de arrependimento, há de ser colhido também a ornar os vasos de nossas salas. Somos também o que não fomos! Esse retrato é indestrutível. Cada camada de tinta se sobrepõe à anterior, sempre deixando à sombra o reflexo do que antes aconteceu, num mosaico alucinado onde, se prestarmos atenção, conseguiremos ver o que de tudo foi feito.
Jogar xadrez com a vida é contemplar a experiência e desafiar-nos a sobreviver na calmaria dos sentimentos domados, na alegria das esperanças mais simples, na contemplação do mínimo.
E essa história de mínimo é absolutamente desequilibrada. A gente teima em ver tanta coisa ao mesmo tempo, e não percebe que as imagens foram tão ágeis que não se fixaram. Recorremos à nossa memória, mas ela também se cansa, afinal deve ser muito chato voltar a fita a todo tempo. E descompensa o tempo entre o ver e o rever. Acho que temos que colocar umas pitadas de imaginar, de querer, de sonhar, de acreditar. São ingredientes indispensáveis nessa alquimia.
E, sentados, sigamos a jogar xadrez com a vida. Com os braços largos, ela se esparrama na cadeira à nossa frente, sempre com um sorriso no rosto. Os movimentos são lúdicos até, ritmados. As peças bailam sobre o tabuleiro e a próxima jogada, aquela que a gente pensou se revela aos nossos olhos como o objetivo alcançado. Quando percebemos a torre está cercada, nosso rei correu de medo e, como um espelho nos permitimos ter a sensação de que, ainda assim, fomos o que melhor poderíamos.
A vida, esse tabuleiro inclinado a fazer escorregar todas as peças, a nos manter sempre em postura de equilíbrio, levantando um lado, deixando o outro escorrer um pouco. Esse quadrado arredondado, sem quinas e arestas, esse balé nos convidando a ser feliz!
E assim vamos, jogando. Na varanda, na cadeira de palhinha. O tabuleiro à frente, as peças sobrepostas, o sol escondido olhando tudo de soslaio e nós, fingindo buscar a explicação para os próximos passos, ocupando uma casa de cada vez. O xadrez se reflete, entre o claro e o escuro, o côncavo e o convexo, entre nós e o que somos, ou mesmo o que deixamos de ser.
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