Ao verme que primeiro roeu… não, não posso começar assim, não quero ter que responder a um processo post mortem. Já pensou na energia que teria que gastar saindo da minha cova e explicando ao juiz que não eram vermes, mas borboletas! “Vermes” é só uma expressão comum, eu diria. Mas eram borboletas, seu juiz! Começaram pela ponta dos meus dedos, depois as minhas bochechas, e depois mais nada. Então acho que posso começar assim:
As borboletas que primeiro acariciaram meus dedos e depois fizeram cócegas em minhas bochechas, deixo aqui essa carta de despedida sem memórias. Vocês não fariam nada com elas. As minhas memórias, assim como a de todos os outros que vieram antes de mim e aqueles que partirão depois, irão se perder no espaço, no tempo, e entre as estrelas que alguém, ao tomar o meu lugar, irá observar no mesmo céu que permanecerá quando eu partir.
Não são úteis, e não são conhecimentos inacessíveis. Outro, fazendo a mesma coisa que eu fiz copiosamente, irá aprender a mesma coisa que eu aprendi. Talvez tirará algum proveito diferente, mas deixo para vocês desvendarem esse quebra-cabeça, borboletas.
Mas não, não memorias. Deixo outra coisa. Deixo sabores. As borboletas que primeiro chegarem ao meu estômago, eis o que vocês encontrarão: flocos. Muitos flocos de sorvete de flocos. E pizza de calabresa. Nada que seja saudável, isso com certeza, assim aconselho que quando acabarem comigo, visitem o vegetariano que caiu ao meu lado. No meu cabelo, irão encontrar babosa com morango, uma mistura que eu juro que dá certo e às vezes faz cachinhos.
E é nisso tudo que vocês, borboletas sem asas, precisam se ater. Não se preocupem com quem eu magoei, vocês não precisarão ficar remoendo isso. Talvez se lembrem de quem eu amei um dia, mas isso não será nada mais que um sabor de canto de boca, eu prometo. E logo vai passar.
Sem mais delongas, espero que vocês aproveitem o banquete.
As borboletas que primeiro acariciaram meus dedos e depois fizeram cócegas em minhas bochechas, espero que quando acabarem, voem para bem longe, porque meu fim será em vocês, e eu não quero que isso termine tão cedo.
Adeus.
Pintura: The Prisoner, Nikolai Alexandrovich Yaroshenko.
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