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Os temperos e o poeta

Peter Rossi

Se não estiver enganado, falo de histórias ocorridas em meados dos anos noventa. Para os mais jovens, causos do século passado. Peço licença para tratar de um tema até certo ponto particular que, entretanto, envolve pessoa das mais admiradas entre todos nós, em Belo Horizonte.

O charme dos homens na cozinha era coisa embrionária. Pouco se falava sobre o assunto. Não existiam programas com esse feitio. O que se via sempre eram receitas apresentadas pela Palmirinha e outras apaixonadas pelo ofício. O nome era extremamente lustroso: culinária. Os livros eram sempre escritos por mulheres. Existia até o Livro de Receitas da Dona Benta, personagem de Monteiro Lobato.

Naqueles idos me interessei sobre o assunto. Comprei uma coleção que vendia em bancas de revistas, ensinando o passo a passo. Me lembro que o primeiro volume tratava das comidas italianas.

Meu primeiro prato: espaguete à carbonara. Bem fácil de fazer, mas para mim foi uma empreitada e tanto. Pronto! Afora o excesso de pimenta-do-reino, ficou até bom o sabor. Extasiado, me propus a aprofundar sobre o tema.

Amigos me indicaram um professor, proprietário de um ótimo restaurante na cidade de Nova Lima – o “Pato Selvagem”. Foi assim que conheci Humberto Passeado. As aulas eram semanais, sempre às terças-feiras. Eu fazia parte da turma da terça-feira. A cada aula, Humberto, com sua habitual simpatia e com notória paciência, me ajudou no processo de inclusão.

O homem tímido, embaraçado aos seus conceitos mais machistas acabou cedendo e apaixonou-se pela cozinha, apaixonou-se pelos colegas e pelas aulas, apaixonou-se pelo professor e suas técnicas.

A cozinha de Humberto Passeado bem retratava a sua personalidade: simples, direta e, ao mesmo tempo sofisticada. Sabores definidos e equilibrados. Com ele aprendi o nome de vários temperos que jamais pensava existirem. Me lembro bem da logomarca impressa em seu material de trabalho: cogumelos fatiados!

Tenho, até hoje, centenas de receitas, bem organizadas em pastas coloridas. Separei por tema e ingrediente principal. Me lembro, ainda, dos concursos de receitas que ele promovia entre as turmas, sempre em locais fantásticos.

Hoje recebo a notícia que Humberto Passeado não está mais conosco. Me pegou como um soco na boca do estômago. “Mas, como assim?” “Não acredito nisso”. “E as aulas, e as receitas?”

Já era tarde da noite, quase madrugada quando a notícia me chegou pelo aplicativo do celular. Li algumas vezes e, num impulso, fui até a cozinha do meu apartamento. Abri os armários e fiquei ali, sentado no chão, olhando as panelas guardadas. Não chorei, não se porquê, mas não chorei. Logo eu que me desmancho em lágrimas até em propagandas de refrigerantes.

Mas fiquei ali. Olhava as panelas e pensava no que fazer, se é que pensava mesmo. Tirei tudo do armário. Devia mudar as panelas de lugar, para mim elas não estavam bem arrumadas. E assim fiz: espalhei tudo no chão e fui recolocando, uma a uma, não sem antes dar uma bela olhadela e imaginar uma comida que poderia ser feita com elas.

A empreitada foi longa, tenho muitos apetrechos de cozinha. Terminadas as panelas, fui para os demais utensílios: raladores, peneiras, escorredores, conchas, espátulas, facas. Arranjei cada coisa no seu lugar. Na verdade, elas já estavam, eu que cismei em refazer o trabalho. Me lembrava dos pratos, da mesa arrumada, dos cheiros, do vapor emergindo das panelas.

Humberto era muito carinhoso com o manusear dos utensílios. Sua cozinha era silenciosa, quando muito ouvíamos sua voz grave e aquela risada marcante.

Ela fazia do ato de cozinhar mais do que a produção do prato. Conversava com os ingredientes, como a lhes perguntar se estavam confortáveis e se sentiam “no ponto”. Tudo com um carinho especial.

À mesa, ao nosso lado, desfilava a sorrir sobre nossas sensações, certamente imaginando como era fácil agradar aqueles alunos. Fácil nada! A sua experiência e seu grande prazer em fazer tudo aquilo é que cuidavam de pavimentar a estrada da alegria dos comensais.

Restam agora as receitas, como que um diário de bordo do amigo querido. Cabe a nós, aos que fomos alunos seus, perpetuar essa lição de vida. E, a cada dia, saborear a presença, o prazer que desfrutamos em conviver com o mestre, com o poeta dos temperos.

Nesse final de semana farei uma das receitas que mais gosto: bacalhau com queijo canastra. Girando a colher nas panelas conversarei com Humberto, pedindo, inclusive, conselhos para a finalização do prato. Essa é a minha homenagem, meu afagar na memória, minha forma de minimizar a dor da ausência.

Outras receitas serão feitas e referendadas. Tenho certeza que nossa cidade, nos próximos dias, encherá a Serra do Curral dos sabores de Humberto Passeado. Belo Horizonte fará repicar os sinos de seus melhores dias. Em volta das mesas, num mínimo minuto de silêncio, avançaremos sobre os pratos, talheres em mãos, a mostrar a nós mesmos que a ausência incomoda, mas não acomoda. Humberto, aquele mestre da cozinha, aquele mestre da vida que fez do seu ofício uma obra de arte, colorida, deslumbrante nos cheiros, inesquecível no sabor, ainda se faz presente. Seria muito frágil imaginar que não teremos mais contato com ele. A cada sabor, a cada receita, Humberto Passeado se sentará conosco, brindando o prazer da cozinha.

Deixemos os guardanapos ao que se propõem, não os utilizemos como lenços a enxugar a saudade. Faz parte o que aconteceu, mesmo tendo a exata noção de que no particular a vida errou ao tirar Humberto de nosso convívio diário. No particular, ela exagerou no sal.

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