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Primeiro dia de guerra

Victória Farias

Era quase meia-noite quando as coisas começaram a se assentar na sua cabeça. Essa hora, diferente do meio-dia, dava a vida um estranho aspecto cinza e amarelo, por conta dos postes de luz na rua.

Toda realidade parecia demais. E todo o pensamento de fuga imaginária era suprimido pelas notícias que chegavam a todo o momento; o celular não parava de vibrar. Era desse futuro que tinha medo. Desse murmurinho de revolta. Naquela manhã, voltando para casa, em uma cena cinematográfica um outdoor lhe chamou a atenção bem quando um caminhão passava na frente. Não conseguiu ler tudo, mas os termos “COVID-19” e “precoce” estavam lá. Sabia o que viria depois, e também sabia que estava demorando.

Pensou em tudo que poderia colocar as mãos para lutar. E logo depois correu por toda a casa imaginando se realmente teria que fazer isso. Era uma visão trágica. As paredes, de cores indistintas para as pupilas dilatadas, pareciam se apertar em cômodos que ficavam cada vez menores. Tinha certeza que uma estranha sinfonia com um violino choroso estava lhe perseguindo. Nem no corpo se cabia mais.

Todas as escuridões, mesmo aquelas já conhecidas, lhe oprimiam os ombros. Ouviu passos que seguiam correndo pela rua e dois ou três estopins ao longe. Os tiros, que sempre estão apenas de um lado, não pareciam ser de quem pretendia socorrer. Tinham um estranho ruído de convite ao caos. Não houve gritos depois. Não pôde especificar se o silêncio era de contemplação ou complacência. Não sabia se a resposta lhe faria nem um pouco feliz.

Sentia que alguém tentava lhe contatar, o vibrar do celular passou a ser mais uniforme do que espaçado, mas não conseguia tirar os olhos da janela. Horas antes, na frente do computador estudando a formação dos Estados e bebericando uma água morna, não podia imaginar que o Estado estaria se desfalecendo diante dos seus dedos. Parecia irônico demais. Mas não teve tempo de apelar ao cosmos. Outros barulhos vinham de todos os lugares. Quando voltou para a cozinha e pensou em como sair dali – ou ficar – teve certeza que nenhuma ajuda estava a caminho.

As primeiras horas de guerra, proclamada por alguém e validada pelo outro lado, lhe pareciam tão dramáticas como imaginou que seria, mas os sentimentos são sublimes e usam e abusam da nossa capacidade de entender o mundo. Não sabia o que sentiria até sentir, e agora com estômago querendo lhe pular pela garganta, não gostava do que sentia.

Meia-noite e um, com metade de si já se acostumando com o conflito e com a outra metade pensando em rotas de fuga terrestres para o Paraguai, percebeu que só haviam se passado 25 minutos desde que ouviu o primeiro tiro. Olhando no reflexo do vidro no armário, jurou que envelhecera anos.

De ouvidos abertos e se concentrando nas sirenes que saíam às pressas do vizinho terreno do Corpo de Bombeiros, pensou de qual lado eles estariam, e quem estavam tentando apagar. Misturando o barulho com o som do violino desafinado, recobrou na memória uma conversa que tivera com um amigo, na qual ele sem querer dormira com celular no peito. Na pia, tamborilou a batida de um coração assim como se lembrava. Antes mesmo de terminar de agradecer pela lembrança, os estopins voltaram e dessa vez estavam bem mais perto. Houve gritos. Se esqueceu de tudo. Gritou também.

*

Pintura: New York Movie – Edward Hopper – 1939

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