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O pior dia da minha carreira de jornalista

Reprodução/Pixabay

Neste cenário que se tem, de um lado, Bolsonaro, de outro, Lula, comentei com um amigo que tenho pena dos jornalistas, que precisam colher, analisar e revelar, diariamente, as pedras que cercam esse jardim de ervas daninhas.

São tempos duros para o jornalismo profissional — se é que já houve tempos afáveis a essa nobre profissão. O que me levou a rememorar que também já passei por alguns maus bocados em minha curta carreira de jornalista.

O pior deles, eu preciso contar como foi.

Foi no Carnaval de 2017, sexta-feira, quando me escalaram para cobrir um bloco de rua da Capital. Se eu detesto a festa do Rei Momo, que dirá trabalhar nela. Mas, ordem não se discute. Cumpre.

Passei a mão no meu bloquinho (aquele clássico, de jornalista) e fui.

Muita chuva. Muita gente. Muita confusão. Muito daquilo tudo que eu não gosto muito. Com dificuldade, consegui alcançar o local onde tocava a banda do bloco. Ali, eu deveria ligar o celular e iniciar, nada mais nada menos, do que uma transmissão ao vivo debaixo de chuva — alguém consegue imaginar eu fazendo isso? Pois é. Fiz.

Cumprida a primeira parte da missão, arranquei o bloquinho do bolso e comecei a registrar entrevistas com meia dúzia de foliões. Até o início daquela noite, uma pequena reportagem deveria ser publicada.

Ah, o bloquinho! Nele, estava preenchido um punhado de folhas com anotações feitas, no dia anterior, durante a entrevista com as então vereadoras Área Carolina e Cida Falabella, as quais, juntas, haviam acabado de lançar uma iniciativa até então inédita no Legislativo municipal: o mandado coletivo. Detalhe: essa entrevista seria a reportagem especial do mês, que deveria ser redigida, editada e, finalmente, publicada, em três dias.

Agora, no olho do furacão, onde eu não sabia se aquilo que me molhava dos pés a cabeça era chuva, cerveja ou “golden shower” — pera lá, isto eu deixo para o Bolsonaro! —, a última coisa que pensei foi… no precioso bloquinho.

Umas trinta mil pessoas me cercavam. Elas estavam bêbadas, loucas e agitadas. E eu, mal humorado, assustado e trabalhando. Eu só queria colher mais uma ou duas entrevistas e ir embora. Mas, como ir embora? Quando você é engolido por um mar de gente, você não sabe se está indo ou voltando, saindo ou entrando. Todas as direções me levavam para o centro da confusão.

De repente, fui tomado por pânico.

Eu não conseguia respirar, não conseguia mexer os braços, não conseguia pensar. Por instinto de sobrevivência, comecei a pular as grandes de contenção, em direção onde não houvesse gente.

Duas ou três grades depois, eu já havia retomado o controle da situação. Localizei a direção que me levasse para longe daquela baderna e comecei a caminhar aliviado. Até que uma ligeira apalpada nos bolsos da calça me conduzisse de novo para o inferno.

O bloquinho! O precioso bloquinho! My precious…

Sim, eu havia perdido o bloquinho — e com ele, a entrevista com os malditos foliões. A entrevista com vereadoras.

A reportagem especial.

Cheguei na redação aos prantos e busquei acolhimento entre os colegas. A nossa editora, Maíra, profissional experiente (inclusive, foi produtora do Programa do Gugu, em São Paulo!), se sentou ao meu lado e disse, docilmente: burro! Como você não gravou a entrevista com as vereadoras?

O saudoso Pedro Guadalupe, dono do jornal, riu muito do meu estado de desespero e disse, naquele jeito tranquilão e meio maluco dele: Relaxa, cara… Quero a matéria das vereadoras publicada em três dias!

Passei o resto da sexta-feira e o sábado chorando, sem saber o que fazer. Então a minha companheira à época, que também é jornalista, pacientemente começou a me entrevistar. Isso mesmo. Através de perguntas, ela foi retirando da minha memória todos os fragmentos que restaram da entrevista perdida. Juntos, fomos construindo um diagrama, montando um quebra-cabeças. E anotando tudo.

Na manhã de domingo, easy like Sunday morning, com 90% das peças em seus lugares, eu sentei e escrevi a reportagem em poucos minutos.

Com edição do mestre e amigo Thiago Ricci e fotos do artista Yuran Khan, a reportagem especial ficou assim:

https://bhaz.com.br/noticias/politica/o-que-e-gabinetona/#gref

Guilherme Scarpellini

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Guilherme Scarpellini
Tags: crônica

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