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A jaqueta

Peter Rossi

Falo de um tempo em que “liberdade era apenas uma calça velha, azul e desbotada, que você pode usar, na hora que quiser”. Numa locomotiva, em meio ao vapor, os jovens tocavam violão e balançavam os cabelos encaracolados. 

Muitos se lembram dessa propaganda, que marcou época, de uma fábrica de roupas jeans. Eu também fui picado pela mosca azul e desejava, sob todas as justificativas, ter uma roupa daquelas. As calças eram até fáceis de obter, mas as jaquetas, essas eram a cereja do bolo. Se bem me lembro, só se conseguia comprar vindas do exterior. E, naquela época, os Estados Unidos e mesmo a Europa, eram muito mais distantes.

Enfim, fiquei falando no ouvido da minha mãe de maneira ensurdecedora. Ela não tinha mínimas condições financeiras, mas, por outro lado, guardava a criatividade que só quem tem filhos dispõe.

Alguns dias depois de minhas lamúrias e considerando todas as possibilidades, a mãe veio com uma conversa de que precisava eu de uma blusa de frio e não de uma jaqueta. Ela não poderia me dar as duas coisas, e a blusa, com certeza, era prioridade.

Na minha cabeça de menino, não percebia a justificativa que minha mãe procurava ocultar: a impossibilidade de arcar com custos tão altos. A blusa de frio era mais fácil de conseguir. Fosse o caso, ela mesma tricotava, diminuindo, sensivelmente, o valor a pagar.

Insistia no pedido. Eu não queria uma blusa de frio. Meus amigos, pelo menos alguns deles, a minoria, devo reconhecer, já desfilava com as tais jaquetas.

Eis que, em dado momento, uma luz apareceu. Minha mãe, certamente, ainda que não deitada dentro da banheira, gritava “eureka”.

Ela comprou duas calças jeans a preços módicos, do maior tamanho disponível, numa loja da minha cidade, chamada “Leão dos Tecidos”. Comprou também alguns metros de flanela. Com certeza foi na caderneta, nome que se dava ao crediário.

Ao chegar em casa, ela “descosturou” as duas calças, idênticas, e pronto! Tinha em mãos tecidos jeans suficientes para costurar uma jaqueta.

Pesquisou alguns moldes nas revistas. Naquela época, as mães comprovam revistas em bancas e nelas vinham inseridos moldes de papel. Bastava estica-los sobre os panos, presos com alfinetes, e riscar em volta com uma coisa triangular, que mais parecia um sabonete pequenino. Na verdade, era um lápis, em formato extravagante.

Algumas pedaladas na velha máquina Singer e estava com a jaqueta em mãos. Só não tinha aqueles botões de metal, eram botões médios, na cor branca, daqueles com quatro furos em que a linha mergulhava em cada um, fazendo um “x”.

É incrível como algumas costuras nos problemas são suficientes a espantá-los, mais ainda, a transformá-los em soluções. As linhas, aprisionadas nos furos feitos pela agulha, traçavam o melhor caminho, bastava segui-lo. Pensando bem, não era tão difícil assim.

Abracei aquele troféu com lágrimas nos olhos e ao vestir percebi que por dentro, a jaqueta era toda forrada de flanela, um pano meio bege, com linhas em xadrez, na cor grená. Hoje chamamos de vinho, bordô e não sei mais o quê.

Confesso que foi um choque pra mim, mas logo minha mãe cuidou de explicar a razão de tudo aquilo.

– Meu filho, forrei com flanela porque assim você agora tem uma jaqueta que também é uma blusa de frio.

Minha cidade realmente é mais fria que a capital. Aquela flanela abraçava meu corpo com delicadeza, irradiando ondas de calor bem agradáveis.

Em todo lugar, lá estava eu com minha jaqueta, desfilando como se fosse o menino mais feliz naqueles tempos. Mas, afinal, era mesmo. Meus amigos admiravam a peça de roupa, e eu dizia que era importada. Coisa de menino. Às vezes me esquecia de qual país e desandava a desenhar com a língua todo o globo terrestre.

Todos queriam vestir e quando eu emprestava, era só elogio. Pediam para as mães buscarem uma igual, mas fato é que aquela só eu tinha. Era eu o menino da jaqueta forrada de flanela.

Não tinha, ainda, maturidade e experiência para perceber que as costuras da vida, quando bem alinhavadas, eram verdadeiros bordados. Minha mãe não costurou uma peça de roupa, simplesmente. Ela fez mais. Bordou com imenso carinho e com certeza, umedecidas por lágrimas ou gotas de suor, a melhor roupa que tive. Viesse dos confins do mundo que minha mente de menino jamais saberia imaginar, jamais seriam iguais. Seriam, não! Seria! Aquela jaqueta era uma só!

Obrigado minha mãe! Uma das maiores alegrias da minha vida. Uma simples jaqueta com botões de plástico. Por fora um jeans maravilhoso, por dentro um ninho de calor.

Não sei onde foi parar a jaqueta. Com certeza minha mãe deu para alguém que necessitava quando não mais servia em mim. Tenho na memória, entretanto, muitos momentos vestidos com ela. Procurei algumas fotos, mas não encontrei nenhuma. Não importa, aquela jaqueta sempre estará comigo.

Falando dessa história senti uma vontade de comprar uma. Fui a uma loja e escolhi uma jaqueta jeans bem bacana. Hoje são muito comuns e acessíveis. Experimentando perguntei ao vendedor se existia alguma forrada. Na falta da mercadoria, ele apressou-se a dizer que se tiver forro não seria jaqueta. Agradecendo, eu sorri disfarçadamente e me perguntei: será?

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