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Resgate

Peter Rossi

A vida nos propõe revanches, que costumamos chamar de resgates. São derrotas anteriores que nunca esquecemos, mas que, quando menos esperamos, nos convidam a pisar no mesmo ringue. São revanches contra nós mesmos, oportunidades únicas de desenhar sobre o quadro opaco um cenário de novas cores.

A vida sempre limpa o quadro-negro, esperando a próxima lição. As frases de amor, escritas com giz, a colorir nossas mãos e nossos corações.

São resgates mesmo! Brotamos do fundo do que ainda podemos ser. E como pacientes com a Síndrome de Estocolmo, nos apaixonamos por quem nos sequestra. Nossa emoção, pura e simples. Se for prá viver sem emoção, que seja sem vida, só memória. É no recanto de nossas almas que encontramos nossa felicidade. Aquela que estava escondida como um gato acuado pelas intempéries que pensamos ultrapassar.

Como dizia Mário Quintana, eu queria ver os olhos redondos e pretos, pregados como botões, a pontuar meu peito e a segurar a camisa, que teimava em explodir, tamanha emoção. Um coração a pular, a tilintar!

Resgate e revanche são oportunidades únicas e, de fato, elas só acontecem uma única vez. O tempo pode passar, em dias, anos ou décadas, mas ali, numa de suas dobras, está guardada a oportunidade.

O intenso brilho vem permeado pelas lâmpadas de uma vida inteira. Só quem viveu sabe todas as trilhas, as toadas, as armadilhas, a vida de soslaio. Mas revanche que se preza nos dá a oportunidade de reviver a vida em sua plenitude, ainda que tenhamos que pular um ano ou outro. Sempre é assim, e isso pouco importa. Vida vivida é exponencial, não segue cartilha de aritmética. Não são espaços iguais, são muitos. 

E, a cada ano, vários são recuperados. Os relógios nos ajudam, e teimam em girar no sentido contrário. Voltamos aos tempos idos, vividos, pensados, amados. E, na nossa maturidade, nos permitimos entrar nessa montanha-russa e desfrutar do vento na primeira cadeira. Olhos marejados pela velocidade da vida e pela esperança de que, de agora em diante, ela passe mais devagar, afinal estamos a colher os louros de tudo que queremos, ainda que há mais de trinta anos. Não tem atraso. O trem só cuidou de parar em muitas estações.

E os trens são sempre assim, eles nunca param. São solícitos, mas não andam de marcha-à-ré. São desbravadores inalcançáveis, lambem as trilhas, os trilhos, as estradas, as curvas. Contornam nossas saudades e nos trazem um vento fresco a brindar nossos sorrisos.

O amor sempre anda de trem, hoje percebo isso. Algumas viagens são mais longas que outras. Às vezes vamos para destinos que não esperamos. Alcançamos estações inóspitas, agressivas, em outras ocasiões, nos desaguam sobre os trilhos, nas praias de nossas melhores esperanças.

Importante disso tudo é manter a lucidez do inesperado. Se a luz é tanta, vamos pra janela alcançar o abajur da lua. Estendamos nossas almas nesse varal e quem sabe conseguimos garimpar algumas estrelas, como diz um amigo meu. São elas, todas elas, as vírgulas, as estações, os anos que não alcançamos. Mas estamos vivos, e como estamos!

Vamos juntos! Pega o ingresso impresso em meus olhos e acredita que depois dessa revanche, nada nos deterá! Somos nós a colorir o desenho que esboçamos há tantos anos. Somos jardim a fazer nascer todas as flores que imaginamos, enquanto jovens, e que hoje a vida nos permitiu colher.

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