(Texto original publicado em 20 de Janeiro de 2021).
As árvores velhas guardam histórias e segredos. Assim como as avós.
Eu era criança pequena e observava silenciosamente aquela mulher. Lá estava ela, na frente do espelho. Novamente, diante da penteadeira ela está frente a frente com a sua imagem e se olha fundo, encarando os próprios olhos castanhos escuros.
– Dani, pega aquele pincel felpudo para mim?!
– Este?
– Sim, esse mesmo.
Ela toca minha mão com a sua mão grande de dedos longos, iguais aos meus, só que a pele era bem morena. Lembro dos seus anéis usados nos dedos médios. Na mão direita, um dourado, com a letra “L” em caligrafia cursiva. “L” de Lourdes. O outro, na mão esquerda, era prateado, com a sombra contornada de Nossa Senhora. Vestígios de sua fé. Recebe o pincel e se maquia passando blush cor de terra e pó de arroz pela face e pelas maçãs do rosto.
– É importante cobrir tudo, deixar uniforme. Não pode esquecer de passar aqui no lado e no fundo do rosto, perto das orelhas. – Ela vira o rosto lateralmente e com suavidade, me mostrando o movimento.
Em seguida, o batom tom de vinho transita firme pelos lábios e a cor cabernet na boca fazem seus olhos mais brilhantes. Com o pente fino penteia os cabelos lisos, curtos e um pouco oleosos, partindo-os ao lado. Ela me solicita novamente:
– Dani, veja se aqui atrás está coberto. Bem aqui no cocuruto da cabeça.
– Aqui?
– Sim, bem aí. Cobre tudo, num deixa a careca ficar aparecendo atrás. Distribui direitinho o pouco cabelo daí.
– Tá. – Pego o pente e aliso os parcos fios, cobrindo a parte de trás da cabeça de vovó.
– Gente velha tem pouco cabelo, minha filha. Que inveja eu tenho de você, queria ser cabeluda assim.
Pega o bonito e intocável frasco marrom de perfume e, mirando-o no pescoço, borrifa um jato de cada lado. O cheiro de almíscar se dissipa no ambiente e eu o incorporo numa inspiração profunda. Memórias e afetos. Lança um outro jato generoso no punho esquerdo e, em seguida, esfrega-o contra o punho direito, distribuindo o cheiro. Mais um pouco nas têmporas e, em seguida um sorriso:
– Vem cá, Dani.
Eu me aproximo do corpo dela, de sua pele bonita, cheirosa, quase sem rugas e me ajeito, já olhando para cima na expectativa do que aconteceria em seguida. Vovó sorri novamente e me olha com um tom de cumplicidade. Com o frasco de perfume na mão, dá aquela borrifada enorme para cima e nos proporciona uma densa chuva que nos cobre de cheiro, intimidade e carinho.
Ali, debaixo daquela atmosfera de gotículas aromáticas que iam caindo na pele, criamos um campo de conexão e silêncio, onde compartilhávamos segredos, mistérios, brincadeiras. Esse era nosso ritual. Durava a eternidade de alguns segundos e se repetiu por diversas vezes, até quando cresci e pude compreender o que acontecera por ali. Vovó me ensinava receitas sobre a vida e o feminino.
Como eu admirava a beleza e a integridade daquela mulher. Que saudade sinto do seu cheiro e do seu olhar de carinho, cuidado e afeto para mim.
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