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O banho de Yara

Rosangela Maluf

O ponto principal era que o sol inundasse todo o box.

Todo o banheiro, mesmo o espacinho por detrás da porta, atrás do velho cesto de vime, sobre o qual os gatos jaziam preguiçosos, tomando seu banho de sol e de língua.

Era um ritual consagrado ao prazer, à dedicação a si própria, ao estar a sós consigo e, ainda melhor, usufruir plenamente de sua própria existência, mesmo que por breves minutos. Ali ela era só ela, apenasmente e somente, ela. Às vezes levava junto o rádio, mas na maior parte das vezes, o grande prazer era quedar-se assim, sozinha, silenciosa, observadora, sonhadora, adolescente, fantasiosa…

Em frente ao espelho do armário uma espiada. Seu rosto sem maquiagem, a testa lisa, de pessoa em paz consigo mesma. Um sulco de indagação e curiosidade dividindo-lhe, ao meio, a testa alta e larga. As sobrancelhas torneadas emoldurando os olhos cor de mel, amendoados, olhos vivos, rápidos, certeiros, quase mortais. Ao mesmo tempo olhos de choro, de compaixão, de bondade e generosidade. Tudo junto.

Ali, naquele santuário os sentimentos contraditórios convivendo em harmonia. Todas as lágrimas podiam rolar sem empecilhos. Todo sentimento brotava e se esparramava pelo rosto abaixo, como chuva!

Abrir a torneira e esperar que a água do chuveiro atingisse aquela temperatura, entre quente e muito quente. O barulho da água caindo, escorrendo pelo ralo, o reflexo colorido dos raios do sol na água que caía.

Lá fora os ruídos da tarde, buzinas, vozes, latidos. O sabonete, ah o sabonete: um tablete de sabão ao leite, da l’occitane, marca francesa , cuja loja do shopping da barra lhe fazia delirar com tantas preciosidades olfativas. Era louca por cheiros: perfumes, perfumes, perfumes…

Já despida entrou vagarosamente sob a cascata fumegante.

Do alto da cabeça, do seu chacra number one até os dedos dos pés. Cobrinhas transparentes, serpenteando pelo seu corpo em movimentos descendentes até o chão. Kundalini reversa não sobe, mas desce; energia perversa ou benéfica? Não sabia.

A sensação indescritível de tomar em suas mãos a massa escorregadia e perfumada que ao deslizar pelo seu corpo deixava um rastro de prazer e espuma. De olhos fechados ela se ensaboava, pensando em campos floridos de girassóis, em praias gregas, na celebração do sol no Taiti, um pôr de sol na Ilha de Capri, safári na África, banho no Ganges.

Tudo se passava como num filme, porém em câmera lenta, muito lenta…

Seus dedos caminhavam com lentidão por todos aqueles caminhos tantas vezes já percorridos. A maestria com que se tocava, descobrindo cada recôndito de si mesma. Uma ternura com seu próprio corpo, uma rápida prece de agradecimento por toda saúde, pelo corpo de mulher saudável, um organismo perfeito e controlado, como um reloginho..

Tudo bem que a lei da gravidade insistia em jogar pra baixo tudo o que até bem pouco tempo estivera em cima. Mas isto não era o mais importante. A textura da pele importava mais. O toque de seda ou de veludo. As sessões intermináveis de esfoliantes e hidratantes. Resistir, quem há de?

O ritual era sagrado. Exorcizava demônios, acalmava tempestades, silenciava trovões enviados por Iansã, cobria de ternura qualquer campo de guerra, paralisava imagens de explosões atômicas, inundava todos os sentidos, o olfato!

Quantas viagens fizera só com o sentir dos cheiros, dos aromas. Os temperos, as especiarias, as fragrâncias. Uma violeta umedecida pelo orvalho da noite, uma pérola ainda incrustada na ostra rescendendo a maresia, uma estrela num céu claro de abril, um hálito de bebê…

Saiu calmamente envolta em toalhas brancas, uma no cabelo, outra enrolada nos quadris. Se secou, trocou as toalhas por um roupão de seda e respirou fundo. Deitou-se aproveitando o resto de sol que batia em sua cama e se deixou ficar!

Esse ritual dos deuses, essa paz quase monástica, foi interrompida por um insuportável tocar de telefone.

*
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