Tais Civitarese

Antony passou batom. Penteou os longos cabelos negros. Aplicou pó compacto sobre a pele clara e imaculada. Vestiu um figurino composto por uma blusa de franjas aplicadas sobre um vestido em tricô.

Antony sentou ao piano. E cantou e tocou uma música extremamente bela sobre a angústia em torno da morte.

A voz de Antony é uma junção entre o grave e o agudo, entre o rouco e o límpido, entre o trêmulo e o forte. Mais do que isso. É uma voz que acorda todas as dores que já foram sentidas no mundo. E ao acordá-las, suaviza os seus pontos álgicos como um bálsamo. Fala da morte. Diz que gostaria de ter alguém ao seu lado no momento da derradeira partida. Seria o medo da travessia mais intenso do que o da finitude em si?

Fala também que não quer se encontrar no entremeio da luz e de lugar nenhum. Para essa sensação, creio que não seja imprescindível morrer.

Mais tarde, descobri que Antony não se chama Antony, mas Anohni. É uma mulher transgênero inglesa. Pela potência de seu canto, achei que fosse uma mulher negra. Lendo sua história, soube que ela fez um longo percurso rumo a sua identidade como artista e como pessoa.

Há apenas cinco anos assumiu publicamente sua identificação feminina, escolheu um novo nome e os pronomes com os quais gostaria de ser tratada. Da cena musical americana marginal e alternativa, foi indicada ao Oscar em 2016 pela trilha sonora de um documentário ambientalista (não foi à cerimônia).

É compreensível que somente alguém como uma estrada tão particular poderia transmitir com sua obra a amplitude de emoções que ela evoca. Rapidamente, transmuta da dor ao deleite. Ela também é artista visual e defende múltiplas causas ecológicas e humanitárias.

Faz dias que ouço sua canção todos os dias. A cada repetição, as notas me arrepiam de maneira diferente. Ora trazem felizes lembranças, ora me fazem chorar.

Anohni, sou sua fã.

Texto sobre a música: “Hope there’s someone”, de Antony and the Johsons.

*
Curta: Facebook / Instagram
Tais Civitarese

Share
Published by
Tais Civitarese

Recent Posts

O Isqueiro de Maconha em Israel

Wander Aguiar Lembram do churrasco na Palestina? Pois bem, esqueci de apresentar um personagem inusitado…

11 horas ago

Mona Lisa

Está em cartaz em Belo Horizonte até o dia 8 de dezembro no Espaço 356,…

18 horas ago

Voo, voa, avua

Sandra Belchiolina sandra@arteyvida.com.br Voo, Voa, avua, Rasgando o céu, Voo no deslize. Voo, Avua, Rasgando…

2 dias ago

Dia da consciência negra: sobre o racismo e as relações de escravidão modernas

Daniela Piroli Cabral contato@dnaielapiroli.com.br Hoje, dia 20 de Novembro, comemora-se mais um dia da Consciência…

3 dias ago

Holofote, holofote, holofote

Eduardo de Ávila Assistimos, com muita tristeza, à busca de visibilidade a qualquer preço. Através…

4 dias ago

Merecimento

Silvia Ribeiro Nas minhas adultices sempre procurei desvendar o processo de "merecimento", e encontrei muitos…

5 dias ago