Primeiro tempo
Já era tarde quando Aurélia foi se deitar. Passava das onze horas e a novela terminara fazia tempo; tanto que sua mãe deitou-se logo depois, cansada, com dores na coluna e um mal estar generalizado – como sempre acontecia às sextas feiras.
Aurélia pegou no colo a irmã mais nova, que dormira diante da TV, colocando-a na cama de baixo, no beliche. Subiu para sua cama, no andar superior e, sentindo uma ansiedade que lhe era normal às sextas feiras, esperou pelo sono que não chegava. Não chegava.
Mas ele chegava: o som da chave na fechadura, batendo a porta da sala, tropeçando no sofá marrom, bêbado como sempre acontecia: era assim, às sextas feiras, quando o infeliz chegava em casa. Da sua cama, Aurélia notava a claridade vinda da rua. Claridade que iluminava o Senhor Morto, na cruz e ao lado dele um quadro do Anjo da Guarda, protegendo duas crianças.
Com seus olhos arregalados e medrosos percebia a cortina de chita balançando. Era o vento que entrava pela janela, naquela noite morna. O fato se repetia, sempre assim: ele, o infeliz, ia pra cozinha, bebia na garrafa térmica o resto do café que sobrara. Arrotava alto. Passava no banheiro. Mijava longamente. Às vezes ligava a TV deixando o som bem baixo.
O infeliz chegava de mansinho. Procurava com as mãos melosas as pernas de Aurélia. A cortina de chita sacudia os girassóis amarelos, enormes. Aurélia transpirava. O coração acelerado. O infeliz cada vez mais perto. Puxava-lhe para baixo a calça do pijama. Ela cruzava as pernas com força. Ele falava baixinho- vou contar pra sua mãe que você me provoca. Vou contar que você espera que ela durma pra vir me atentar, vou contar tudo pra sua mãe.
Aurélia nem chorava. Com o coração disparado apenas esperava que aquilo acabasse logo. Na cama de baixo, a irmã mais nova tossiu. O infeliz parou. Aurélia respirou fundo; não via a hora de tudo acabar. O infeliz recomeçou.
Desceu-lhe o pijama junto com a calcinha, as suas roupas imundas caindo até os joelhos. Abriu a braguilha com a mão esquerda. Com a mão direita colocou dentro de Aurélia aquele dedo imundo, grosseiro, que lhe queimava feito brasa. Depois aquilo…
Aurélia pedia tanto para morrer, pedia tanto!
Segundo tempo
Um dia chegou a Dinda dizendo que ia pra capital. Aurélia implorou para que a levasse junto. Aos quinze anos poderia trabalhar em casa de família, babá, serviços domésticos, qualquer coisa que lhe permitisse ir embora dali. A Dinda disse que sim. A mãe de Aurélia disse talvez. O infeliz disse que não e a irmã mais nova só chorou.
A vida na cidade grande não era fácil. O trabalho do dia a dia era árduo: limpar, esfregar, lavar, encerar e ainda levar e buscar o Danielzinho na escola. O tempo foi passando. Os domingos de folga eram passados na casa da Dinda. O sono que lhe era tão difícil passou a ser inteiro, com pesadelos cada vez mais raros.
Até que no final de outubro Aurélia completou dezoito anos. De presente pediu permissão para estudar. Dona Alice concordou desde que o trabalho em casa permanecesse sem nenhumazinha alteração. Pode deixar, a senhora não vai se arrepender por me ajudar.
O colégio, as novas amizades, o tempo voando e rápido chegou o final do curso. A Dinda, sempre por perto, resolve então se mudar para uma cidade ainda maior, a principal capital do país. Tanto fez que levou junto a pequena afilhada. Chegaram as duas, num dia de muita garoa, muito frio e a cidade lhe pareceu um filme de televisão. Muita gente. Muito movimento. Muitas luzes. As lanternas e faróis dos carros. Nunca vira nada parecido. Vixemaria!
Terceiro tempo
Um salão perto de casa. Só a senhora me ensinar, aprendo rápido. Tenho boa vontade. Cadê a manicure, a moça das mãos? Ficou conhecida no bairro, depois nas redondezas e foi economizando cada real que ganhava de gorjeta.
Alisou o cabelo anelado, deixou-o crescer ainda mais. Aprendeu a cuidar da pele, cuidou dos dentes lindos que nunca haviam visto um dentista! Olhava-se no espelho e gostava do que via. Era uma moça quase feliz!
Dizem que do destino ninguém escapa e o que está escrito, assim será! Foi num domingo, numa roda de samba que ela conheceu Enrico. Um gringo que dançava desajeitado, mas era falante, alegre, um pizzaiolo morando não muito longe do seu bairro. Seus finais de semana passaram a ser de muita alegria: encontrava-se com ele, comia pizza de todos os sabores e depois dormia na casa dele. Abraçadinha. Não era amor, era um gostar muito, de verdade.
Algumas vezes ligava para sua família no interior. A mãe morrera, fazia algum tempo. A irmã Verônica, tão novinha, já casada esperando o primeiro filho. Noticias do infeliz que se casara de novo. Uma filhinha. Pobre criança. Pobre irmã mais nova. Pobre Aurélia. Que morra o infeliz. Nunca falara do padrasto para o noivo. Preferia resolver ela mesma na solidão das noites insones e nos pesadelos que, vez por outra, ainda insistiam em persegui-la.
Um dia Enrico chegou agitado. Vamos pra Itália comigo. Você vai gostar. Não vai se arrepender. Poderemos ter uma vida melhor. Vou te mostrar as fotos; a cidade é pequenina, mas bonita. E vamos arrumar os papeis, se for preciso casar com você, eu caso! Vamos ser felizes, você vai ver. Minha irmã tem um restaurante e assim, já tenho emprego.
Quarto tempo
A dona da padaria liga o computador. Entra na Facebook. Uma Aurélia Miglioni quer adicioná-la como amiga. Ela aceita. On-line. – Dona Alice, sou eu Aurélia. Todos bem? E o Danielzinho? Estou bem. Bebê? Ainda não. Quero viajar um pouco. Aproveitar a vida. Sim, Enrico é um bom marido. Ótimo marido. A mãe? Faleceu coitada. Verônica? Tão novinha e já casada. É, ficou mesmo só com um filho, e diz que já chega. Sim, gosto muito.
De trem se vai a muitos lugares bonitos e não é caro. Tá tudo dando certo, graças a Deus. Não, nós moramos na casa antiga da mãe. Casa grande. Gosto de cuidar. Tudo diferente. Gosto muito. Aprendi a cuidar da casa, do terreiro, das flores e já falo um pouco de italiano. Morro de vergonha. Sim.
– Soube do infeliz? Tive notícias sim e gostei foi muito! Que padrasto que a mãe nos arrumou, né? A senhora sabe, ele não valia nada mesmo! Contei que ele se casou de novo? Pois é, teve uma filhinha. A mulher suspeitou de coisas estranhas. Quatro anos tinha a garotinha. A mãe ficou de butuca. Ela tinha um primo, jagunço, daqueles de tiro certeiro.
Então! Foi encontrado estirado no córrego, mas morreu foi de tiro, não foi afogamento não. Verônica que contou quando telefonei a última vez. Sim, ficou tudo por isto mesmo. Não encontraram o culpado. Nem vão encontrar. Sim. Não. Não. Verdade. Isto mesmo: bem feito! Bem feito.
E por ser dezembro as duas se desejaram boas festas, feliz natal e um próspero ano novo!