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Ensaio sobre os sentidos

Ensaio sobre os sentidos – Ilustração: Júlia Bernardes
Luísa Bahia

Há um tempo atrás escrevi que, se José Saramago estivesse vivo, o título desse texto poderia ser o título do seu próximo livro. Digo isso pelo interesse do genial autor português em retratar a sociedade a partir de um estado de exceção, de privação. Ensaio sobre a Cegueira traz uma humanidade que não mais enxerga e aí precisa olhar para dentro, revelando seus medos, bizarrices, resgatando o afeto e a sensatez. “Uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”, ele escreve. Em Ensaio sobre a Lucidez, um país imaginário vive um fenômeno eleitoral inédito: uma maioria esmagadora de votos brancos, colocando em crise o sistema político e as instituições governantes. Há também o livro Intermitências da Morte, onde a senhora da capa preta deixa de atuar e as pessoas não morrem mais. Instaura-se o caos completo dentro das famílias, do comércio, dos hospitais… As funerárias lucrando, a Igreja e a Estado disputando suas fortunas materiais e simbólicas. 

Recorri ao José, pois confesso enfrentar uma dificuldade ao escrever este texto. Elaborar sobre uma doença que colocou o mundo do avesso, daqui do meu 10º dia do tratamento, se tornou uma tarefa difícil, por tudo parece estar ainda latente e profundo. Eu poderia contar do sufoco na ida ao hospital, da minha indignação diante de um fogo cruzado de narrativas sobre a cura, da revolta com o descaso, a lentidão e a irresponsabilidade política em lidar com uma doença que já tem prevenção. Eu poderia compartilhar também sobre o meu medo do medo da morte, sobre a minha palpitação ao ver fotos de aglomerações, sobre a dificuldade de ficar sem fazer nada numa sociedade estruturada na produtividade, sobre os meus rituais diários de saúde física, mental e espiritual, sobre o quanto o amor é vitamina! Agradeço imenso a todo ele que veio em forma de flor, comida, mensagem, oração! E rir, né? Nem precisa dizer o quanto o humor cura!

Mas escolho falar dos sentidos, para que talvez esse relato faça algum sentido para você, que me lê. Lá pro 3º dia, entendi que eu devia ouvir menos a minha mente e mais o meu corpo. Estar muito atenta a cada sinal. Desse organismo ouvi mensagens como: dor de garganta, ardência e dormência no peito, falta de ar, choro, cansaço, medo, carência, perda parcial de olfato e perda total de paladar. 

No 5º dia, depois de uma cochilada no fim da manhã, fui morder um pedaço de queijo canastra (pelo qual sou alucinada) e senti um gosto estranho, tipo morder uma borracha. Resolvi lamber um limão e nada! É, perdi o paladar, constatei. Almocei arroz, feijão, couve, beterraba, tomate, mas confesso que se tivesse de olho fechado, eu não saberia dizer o quê era o quê. Daí fiquei tentando perceber as texturas e se as notas de acidez, doçura eram reais ou invenção da minha cabeça. Naquele dia minha mãe tinha trazido uma marmita de doces do dia dos pais. Eu peguei um brigadeiro e disse, “cara, você não vai falhar com uma doçólatra”. Em vão! 

Fiquei pensando o quanto comer é prazer. Estou aqui, me alimentando de coisas saudáveis, mas confesso que tenho tido pouquíssima fome. Comer perdeu a graça! Tenho tentado preparar coisas bonitas, para pelo menos encher os olhos, mas confesso que às vezes dá vontade de tomar aquelas pílulas da Nasa, coloridas e com gosto de nada.

Agora, voltando ao Saramago, imagine se todo mundo perdesse o paladar. Como seria a comida de boteco, os almoços de família, o Master Chef, o sopão da rua, o picolé da praia, a empadinha, as frutas da estação, a jabuticaba no pé, as quitandas da tia Maria, os aniversários, casamentos, os drinks das baladas, o chocolate quente, o torresmo, a Companhia das Índias e suas iguarias. Imagina o mundo sem sabor? 

Dizem que esse sintoma pode demorar meses para passar. Penso no quão sintomático é deixar de ter prazer pela boca, nessa sociedade pouquíssimo palatável. Há muitos pensadores que compreendem essa crise sanitária, causada pelo vírus com coroa, uma resposta à ação violenta e voraz da humanidade em relação a Terra. Talvez esse dessabor que experimentamos, seja um efeito rebote da extinção de sabores e de diversidade, que provocamos todos os dias. Digo não só em relação à fauna, à flora, mas em relação à nossa diversidade de pensamento, de formas de se relacionar, de escolha religiosa, de liberdade de pesquisa, de expressão artística, do exercício da democracia! 

Um dia um médico homeopata me disse que “o corpo adoece pra sarar”. A natureza provoca a queima pra adubar o solo. Será que a gente, humanidade, sabe sanar a bagunça que tem feito? Escrevo olhando para cima, para o tricô que tricotei esses dias e que resolvi pendurar na parede, depois do fim do novelo azul. É a minha Bandeira da Resiliência! 

O tato não me faltou. Fecho os olhos e sinto o relevo das pequenas montanhazinhas de lã azuis. Penso nas pessoas que tecem, pacientemente, nesse e em outros tempos. Penso nas transformações que se operam nesses bordados. Penso na música do Sérgio Pererê “Eu tentei compreender a costura da vida, me enrolei pois a linha era muito cumprida, oi. Como é que eu vou fazer para desenrolá? Para desenrolá?”

Bom, a resposta eu não tenho. Mas pratiquei nesse isolamento alguns verbos que podem ser pistas para o bem viver: Respirar, Repousar, Beber água, Rezar, Ler, Tricotar, Ouvir música, Conversar com pessoas amadas, Banhar no Sol, Conversar com a Lua, afinal ela pode estar Crescente, sorrindo pra você. 

Não preciso nem dizer pra vocês usarem aquela paradinha no rosto que protege a você e aos seus colegas de mundo e, para você guentar a mão de encontrar a galera, mesmo tendo tomado aquela picada. O bicho coroado tá se turbinando em altas variantes. Se cuida e cuida do outro terráqueo e da Terra, que sempre cuidou da gente. 

Saúde! 

*

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  • Temos andado anestesiados, viu, Luíza. Perder o paladar talvez nos faça refletir o quanto de sensibilidade da alma temos perdido, o quanto atrocidades têm nos feito acreditar que são normais e como temos perdido a nossa capacidade de nos sentir perplexos.
    Creio que se algo de bom pode ser retirado desse momento é a revalorização do simples. O retorno ao essencial, o ar nos pulmões, o sol na pele e a água da chuva. porque o precisamos mesmo cai do céu. E nos resta apenas viver e sonhar.

    • Oi Cássio! Acredito demais na sua proposta. Valorizar o simples, as pequenas coisas, o precioso e inusitado cotidiano.
      Obrigada pela reflexão.
      Forte abraço,
      Luísa

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