Daniela Piroli Cabral
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Na última sexta-feira, o clube de leitura do qual faço parte debateu o livro de Judith Butler, “Problemas de gênero” e eu, como mediadora, escrevi algumas palavras sobre a obra e a temática do gênero.
A leitura de Butler é desafiante e instigante em suas proposições. Ela propõe uma subversão no campo da identidade ao problematizar as questões de gênero a partir de uma lógica não binária e heteronomativa.
Sustentando sua obra em referências importantes como Levi-Strauss, Sigmund Freud, Simone de Beauvoir, Julia Kristeva, Jacques Lacan, Luce Irigaray, Monique Wittig, Jacques Derrida e Michel Foucault, ela propõe novas construções teóricas fora da lógica binária para se pensar a identidade. Evidentemente, existem muito mais perguntas que respostas, mas é importante dar visibilidade a todas essas discussões tão importantes quanto necessárias no momento atual.
O primeiro ponto que queria trazer é a questão do rompimento que Butler propõe em relação ao alinhamento pensado entre corpo, sexo, gênero e sexualidade. O nascimento no sexo biológico do macho não leva necessariamente a uma identidade masculina e a um desejo heterosexual em relação ao feminino. Assim como o nascimento no sexo biológico da fêmea não leva necessariamente a uma identidade feminina e a um desejo heterossexual em relação ao masculino. Não há pares opostos, mas movimentos dinâmicos de mútua afetação que contribuem para a construção de identidades. Nesta perspectiva, pode-se falar numa proliferação identitária além da estrutura binária e a necessidade de ressignificação subversiva dela decorrente.
Para a autora, o sexo não é uma dimensão natural dada pelo biológico ao nascimento. Tanto sexo quanto gênero são categorias construídas socialmente, o que retira a nossa falsa estabilidade no campo da identidade do feminino e do masculino. Além disso, ela questiona a subordinação histórica que se fez da noção de gênero à questão da formação da identidade.
Tal proposição nos leva a um segundo ponto de atenção que é pensar as identidades (no plural) a partir de uma lógica de uma performatividade construída social e culturalmente. Isso significa lançar uma interrogação na constituição do sujeito que não demande uma identificação normativa com o sexo binário. Isso nos leva a superar uma lógica biologicista e essencialista e também todos os impactos disso. Para mim, um dos principais seriam os efeitos de despatologização dos gêneros. Temos acompanhado diversas tentativas conservadoras de patologizar comportamentos tais como o Projeto de Lei da “cura gay” que recentemente tramitou no nosso parlamento.
O terceiro ponto que queria destacar é a desnaturalização das desigualdades de gênero, que deixam de ser compreendidas como “inatas” ou “naturais” e passam a ser entendidas a partir de um amplo campo de sentidos que são produzidos, compartilhados e transmitidos socialmente. Isso nos leva a não permitir mais que as diferenças entre os gêneros se tornem desigualdades nem que se naturalizem como relações de poder e de dominação. A necessidade de classificação responde à uma demanda da vida “disciplinar”, que muitas vezes reforça estereótipos aprisionados dentro de uma determinada estrutura social.
Isso nos leva ao quarto ponto que é pensar a questão do preconceito e das violências, físicas e simbólicas, sofridas por aqueles que “escapam” da normatividade estabelecida. A esse respeito, também podemos enfatizar a lógica do reconhecimento e do poder proposta pela autora, conferindo a questão da alteridade lugar de destaque para se reconhecer o estatuto do humano nas diferenças. Reconhecer o outro na sua diferença faz com que eu me reconheça a mim mesmo. Isso significa passar a reconhecer os sujeitos para além da normatividade de comportamentos na modernidade.
O quinto e último ponto que eu gostaria de trazer é para se pensar a questão do desejo. O desejo sempre pressupõe destinatários. O desejo é direcionado ao outro. E a esse respeito é necessário operar a desconstrução de sexualidades aprisionadas. Podemos pensar em “assumir”, palavra que odeio, porque assumir significa quase uma confissão de culpa. Podemos pensar nas estratégias de repressão. Mas mais que proibir, a repressão implica numa exigência que se faça algo de uma única maneira, de um único modo. Assim podemos pensar numa tentativa de se domesticar o exercício de uma sexualidade que pode ser tão diversa e singular como o é o desejo.
Referências:
– Clube de leitura Lendo elas – Instagram: @lendo.elas
– Filme: A garota dinamarquesa – https://www.youtube.com/watch?v=NlH4n5FRq1c
– BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2020.