Categories: Convidados

Cid Adão, o cidadão

Márcio Magno Passos

O despertador dispara o alarme às seis horas da manhã e Cid, sem abrir os olhos, dá um soco rasante e certeiro em cima do criado. A mulher acorda com o barulho do relógio rolando pelo chão do quarto:

– Que foi Cid, tá ficando doido?

– Essa pobreza me mata de raiva, tá na hora de ir para aquela fabricazinha de merda.

– Calma, homem!

– Não enche o meu saco que você não entende nada. Você fica no bem bom em casa enquanto eu dou um duro danado. Falar é fácil…

A mulher vira para o canto e se ajeita para continuar o sono, enquanto Cid tateia o chão com os pés à procura dos chinelos. Entra no banheiro, bate a porta e inicia sua higiene pessoal. Primeiro escarra na pia, depois abre uma pasta dental que deixa aberta e mija na borda do vaso. Arrastando os chinelos volta para o quarto e veste a roupa que a mulher deixou preparada. O pijama fica no chão do banheiro.

A caminho do ponto de ônibus ele vai abrindo um maço novinho de cigarros e jogando pelo chão aqueles pedacinhos chatos de papel. Lá no ponto, rosna um “oi” para duas pessoas conhecidas e fica no seu canto fazendo imagem de homem sério e compenetrado. Vez por outra, bem sutilmente, lança um olhar à direita, em direção à Imaculada, uma deliciosa morena que trabalha na padaria do Sô Jair. Sua fantasia vai a mil e ele lembra-se da esposa. Quanta raiva…

O ônibus vai descendo a ladeira e Cid percebe, na ponta esquerda do olho, uma velhinha em pé, tentando se segurar nas alças das poltronas. Decidido a não ceder o lugar, vira o olhar à direita e se faz de distraído. Viaja quase meia hora olhando para a direita e a velhinha prestes a se esborrachar no chão.

Porta da fábrica, dez para a sete da manhã. Cid está debruçado sobre o corrimão da portaria. Só vai bater o cartão quando estiver faltando trinta segundos. Entrar antes, jamais. É dar muita colher de chá para patrão. Sete e vinte da manhã, Cid já bateu papo com dois colegas e abre seu armário. Avista Mário já trabalhando e sua raiva aumenta. “Bom dia, Pelego”, é o máximo que consegue dizer ao atravessar a oficina. Noventa minutos depois, Cid já fugiu do trabalho e está no banheiro tentando fazer o que não está com vontade.

Hora do almoço, restaurante lotado, Cid já entra criticando a comida grátis do dia anterior. Garante que na sua casa come muito melhor, mas guarda a sobremesa e o suco para levar ao filho.

Sai do restaurante conversando com Antônio da elétrica, que está com o filho doente. Sem dinheiro, Antônio conta que vai vender o televisor colorido novinho em folha, por 1000 reais. Cid fala que quer ajudar e oferece 500. Conversa vai, conversa vem, negócio fechado. “Só pra te ajudar”, garante Cid.
Faltam quinze minutos para as quinze horas.

Cid já está com o cartão de ponto dentro do relógio, aguardando o horário de saída e contando para outro colega o lucro na compra do televisor. Sai da fábrica, entra no ônibus e para no meio do caminho, no bar da Dona Noêmia. Joga sinuca, toma duas cervejas e vai para casa. Esquece na mesa de sinuca o suco e a sobremesa do filho.

– Paiê, Sô Expedito mandou avisar que hoje tem reunião da associação dos moradores de bairro…

– Eu não aguento estas reuniões chatas – responde o pai.

– Paiê, a professora falou que amanhã vai ter reunião dos pais na escola…

– Sua mãe vai me representar.

– Pai, Sô Zeca veio dizer que hoje tem reunião do partido…

– Filho, ele sabe que eu detesto política.

Cid entra na sua casa, rosna um “oi” para a esposa sem olhar em sua direção, caminha até o banheiro, toma um banho e encontra o jantar quente e feito com carinho, colocado à mesa. Janta, não fala nada e se assenta em frente ao televisor. O Jornal Nacional informa sobre os últimos casos de corrupção envolvendo os políticos. Cid engole em seco, olha nos olhos da mulher, estufa o peito e fala do alto da sua sabedoria:

– É por isso que o Brasil não dá certo. Eu faço a minha parte, mas só sobe na vida essa cambada de ladrões e desonestos. Assim não dá…

Começa a novela e Cid Adão dorme no sofá. No dia seguinte, o relógio despertou rolando pelo chão do quarto. Era início de mais um dia de Cid Adão, o cidadão…

Blogueiro

Share
Published by
Blogueiro

Recent Posts

Fiel

Silvia Ribeiro Antes de mais nada seja fiel ao que você sente. Se você está…

18 horas ago

Esquina do medo

Mário Sérgio Nascer no interior, ainda que numa cidade cuja existência se deu a partir…

1 dia ago

Os Olhos Claros de João

Parte III Rosangela Maluf Cheguei em Milagres. Fany foi me pegar na rodoviária. Ela e…

2 dias ago

Anistia

Tadeu Duarte tadeu.ufmg@gmail.com Nesse momento de grande polarização política é preciso que os homens públicos…

2 dias ago

Caminhada

Peter Rossi Estamos na cidade de Campos do Jordão. Apesar do tempo estar muito frio…

3 dias ago

Sagrada Família

Wander Aguiar A Sagrada Família de Barcelona é uma das igrejas mais emblemáticas do mundo,…

3 dias ago