O despertador dispara o alarme às seis horas da manhã e Cid, sem abrir os olhos, dá um soco rasante e certeiro em cima do criado. A mulher acorda com o barulho do relógio rolando pelo chão do quarto:
– Que foi Cid, tá ficando doido?
– Essa pobreza me mata de raiva, tá na hora de ir para aquela fabricazinha de merda.
– Calma, homem!
– Não enche o meu saco que você não entende nada. Você fica no bem bom em casa enquanto eu dou um duro danado. Falar é fácil…
A mulher vira para o canto e se ajeita para continuar o sono, enquanto Cid tateia o chão com os pés à procura dos chinelos. Entra no banheiro, bate a porta e inicia sua higiene pessoal. Primeiro escarra na pia, depois abre uma pasta dental que deixa aberta e mija na borda do vaso. Arrastando os chinelos volta para o quarto e veste a roupa que a mulher deixou preparada. O pijama fica no chão do banheiro.
A caminho do ponto de ônibus ele vai abrindo um maço novinho de cigarros e jogando pelo chão aqueles pedacinhos chatos de papel. Lá no ponto, rosna um “oi” para duas pessoas conhecidas e fica no seu canto fazendo imagem de homem sério e compenetrado. Vez por outra, bem sutilmente, lança um olhar à direita, em direção à Imaculada, uma deliciosa morena que trabalha na padaria do Sô Jair. Sua fantasia vai a mil e ele lembra-se da esposa. Quanta raiva…
O ônibus vai descendo a ladeira e Cid percebe, na ponta esquerda do olho, uma velhinha em pé, tentando se segurar nas alças das poltronas. Decidido a não ceder o lugar, vira o olhar à direita e se faz de distraído. Viaja quase meia hora olhando para a direita e a velhinha prestes a se esborrachar no chão.
Porta da fábrica, dez para a sete da manhã. Cid está debruçado sobre o corrimão da portaria. Só vai bater o cartão quando estiver faltando trinta segundos. Entrar antes, jamais. É dar muita colher de chá para patrão. Sete e vinte da manhã, Cid já bateu papo com dois colegas e abre seu armário. Avista Mário já trabalhando e sua raiva aumenta. “Bom dia, Pelego”, é o máximo que consegue dizer ao atravessar a oficina. Noventa minutos depois, Cid já fugiu do trabalho e está no banheiro tentando fazer o que não está com vontade.
Hora do almoço, restaurante lotado, Cid já entra criticando a comida grátis do dia anterior. Garante que na sua casa come muito melhor, mas guarda a sobremesa e o suco para levar ao filho.
Sai do restaurante conversando com Antônio da elétrica, que está com o filho doente. Sem dinheiro, Antônio conta que vai vender o televisor colorido novinho em folha, por 1000 reais. Cid fala que quer ajudar e oferece 500. Conversa vai, conversa vem, negócio fechado. “Só pra te ajudar”, garante Cid.
Faltam quinze minutos para as quinze horas.
Cid já está com o cartão de ponto dentro do relógio, aguardando o horário de saída e contando para outro colega o lucro na compra do televisor. Sai da fábrica, entra no ônibus e para no meio do caminho, no bar da Dona Noêmia. Joga sinuca, toma duas cervejas e vai para casa. Esquece na mesa de sinuca o suco e a sobremesa do filho.
– Paiê, Sô Expedito mandou avisar que hoje tem reunião da associação dos moradores de bairro…
– Eu não aguento estas reuniões chatas – responde o pai.
– Paiê, a professora falou que amanhã vai ter reunião dos pais na escola…
– Sua mãe vai me representar.
– Pai, Sô Zeca veio dizer que hoje tem reunião do partido…
– Filho, ele sabe que eu detesto política.
Cid entra na sua casa, rosna um “oi” para a esposa sem olhar em sua direção, caminha até o banheiro, toma um banho e encontra o jantar quente e feito com carinho, colocado à mesa. Janta, não fala nada e se assenta em frente ao televisor. O Jornal Nacional informa sobre os últimos casos de corrupção envolvendo os políticos. Cid engole em seco, olha nos olhos da mulher, estufa o peito e fala do alto da sua sabedoria:
– É por isso que o Brasil não dá certo. Eu faço a minha parte, mas só sobe na vida essa cambada de ladrões e desonestos. Assim não dá…
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