Tempos atrás, relatei aqui nesse espaço de um jacaré, que não era um crocodilo, que apareceu e começou a viver na minha sala de estar. Despreocupado, ele ocupava os lugares onde antes formas humanas costumavam estar. Bebia, comia, passava despretensiosamente os canais da TV.
Certo dia, estávamos, eu e aquela forma animalesca em verde escuro, conversando sobre futebol. As opiniões dele eram um tanto curiosas. Por algum motivo, dava preferência de torcida a um time fluminense. Alguma coisa sobre o vermelho e preto atiçarem seus instintos mais inumanos. Eu não me importei. Continuamos assistindo ao jogo.
Ele ainda enchia o box do meu banheiro para dormir, e, desde a sua chegada, passamos a não receber mais visitas. Ele (ou ela) havia se tornado um jacaré depois de voltar do posto de saúde, durante uma campanha de imunização em massa há alguns meses. Por motivos que ninguém sabe explicar, alguém havia jogado uma maldição nas pessoas que resolvessem se medicar. Dizem que é briga de ego. Eu chamo de loucura.
Certo dia, algumas informações estranhas – mais do que as de costume – começaram a sair na mídia. Parece que algumas doses do projeto de imunização, que foi mal arquitetado e desesperadamente mal praticado, não estavam fazendo efeito por um motivo simples: estavam vencidas.
Uma graça, pensei. Já não bastava a recusa de resposta a 81 e-mails. É claro que enviariam vacinas vencidas para cá também. Ainda assim, procurei não dar muita atenção a mais uma informação que poderia deixar o dia do brasileiro que se preocupa com política, mais difícil do que já está.
Continuei a passar nosso café. Meu e do jacaré. Ele sentou a mesa meio desajeitado. Arrumou a xícara com a memória que tinha de quando era humano e se serviu. Depois do primeiro gole, algo estranho aconteceu àquelas escamas verdes. O tom rosado, típico de gente, voltou a tomar conta daquele semblante por hora triste. Quando me dei conta, estava novamente tomando café com um amigo, que, humano, logo tratou de se arrumar e voltar ao posto de saúde para repor o imunizante, pois o café cortara a validade da vacina assim que se descobriu vencido.
Como sabia que ele iria demorar lá, já deixei o box cheio para quando ele voltar. Além de umas sardinhas do lado do banheiro também. Afinal, ninguém é de ferro e nada como um lanchinho da meia-noite para melhorar o humor de qualquer jacaré.
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