Havia uma estranheza no ar. Um descontentamento coletivo. Uma falha sistêmica quase invisível, mas que trazia incômodo a qualquer um que se interessasse em olhar de perto, ou que ligasse a televisão em horário nobre. As palavras que vinham das ondas de rádio – ouvidas durante longas filas de espera em postos de gasolina – não pareciam fazer sentido. Os gritos indignados de quem clamava por respostas eram quase uma encenação grotesca que só era passível de entendimento para aqueles que se forçavam a acreditar que aquilo que estavam vivendo não era verdade.
E eles existiam. podia-se se ver da janela um ou outro, que parecendo coabitar entre si em um mundo paralelo, desafiavam a própria realidade de números e palavras sentenciais. Era inútil o mantra de “ninguém aguenta mais” e a ameaça aqueles que descumprissem as regras – cuspidas para um microfone ao fundo de seis bandeiras – era a envergonhada multa.
Se eu tivesse que discutir com um policial – o que adianto, não tenho ímpeto para tal – seria mais ou menos assim: se você está me multando, quer dizer que eu poderei sair da minha casa e ir para a fila da lotérica? Se a resposta fosse sim, entenderia como um convite à liberdade; se não, o Estado teria que se virar para existir sem o pagamento dos cem reais da taxa. As duas hipóteses me parecem extremamente impiedosas para um espírito humano que – como todo mundo – não aguenta mais.
Não vou mentir que não me divirto com as reportagens feitas pelos colegas jornalistas na tentativa de intimidar as pessoas que andam por aí com os dentes à mostra. Não sei como treinam suas expressões de surpresa quando algum entrevistado diz: por que eu deveria me importar? Sem saber o que fazer, soltam números de contas que nem eles mesmos sabem se corretos – de Estados que por boa vontade e bem coletivo, se comprometem a atualizar um sistema diário com aqueles que não mais poderão enfrentar filas de lotéricas. Os números, a menos que sejam de uma conta bancária negativa, parecem não impressionar ninguém.
A despeito disso, vi muita coisa que, mesmo ao longo dos anos e jurando que já tinha conhecido o pior, não queria ter presenciado. Com um pesar quase de morte, entendi que saber o quão cruel podemos ser se mostra pior do que todas as crueldades já vividas. Ver o quão longe uma ideia pode ir, ou o quão inadequado um senso pode ser, tirou de mim alguma alegria – imerecida – que eu poderia ter acumulado ao longo desses dias – apesar de todas as tristezas.
Constatei que, embora caminhemos para “sair dessa”, “essa” parece que nunca aceitará o convite de sair de nós. A ignorância, uma conhecida que queria longe, agora se veste de amiga que convido a se juntar a mim antes de ler o jornal diário, que termino sempre com um constatar “aqui jaz tudo que o Hino me prometeu ser, e tudo o que uma promessa de campanha disse que seria“.
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