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Entre o arco-íris e o mar

Imagem de Cindy Lever por Pixabay
Rosangela Maluf

Belkiss tinha um sonho na vida, conhecer o mar.

Nos filmes e novelas da TV cenas, de mar despertavam sua fantasia, e com ela voava nas asas da imaginação. Não que ela não sonhasse outros sonhos, mas nenhum mais forte que o do mar. Um dia, bem longe dali, numa ilha cercada por água azul, areia a perder de vista, encontrar um bom lugar para se viver. Olhar para o nada e nada ver, só céu e só mar. Ah, como seria bom. Acordar cedinho, antes da lida diária, dar um mergulho no mar. Acabar as obrigações do dia, passear na praia. Nas noites de muita quentura, respirar a brisa vinda do mar. Ver o sol nascer ou a lua morrer, o olhar perdido, sem nada encontrar pela frente, só céu e mar. Em seus sonhos não havia príncipe nenhum, mas cabia um pescador, moreno, queimado de sol, com os cabelos longos onde o vento pudesse brincar de roda. Um homem corajoso e forte. Destemido para enfrentar o mar. De bom coração. Sorriso aberto e olhar perdido no azul. Assim sonhava Belkiss.

Agora, viver aqui em Belém do Desterro!

Isso lá é nome de cidade? Coisa mais sem graça. Nada de mar, só montanha atrás de montanha, morro atrás de morro. Dizem que Minas inteira é assim mesmo, não tem litoral, nem uma beiradinha de mar; mas sabe o que eu acho? Acho tudo aqui uma chatice. Uma vida sempre igual, as mesmas caras, reclamando das mesmas coisas, falando mal das mesmas pessoas e puxando o saco dos mesmos políticos e fazendeiros. Tudo igual. Nada acontece, nem uma pequena história de cinema. Nem um assalto ao Banco do Brasil, nenhuma novidade na rádio belenense. As manchetes do jornal Sino de Belém, só conversa fiada do povo daqui. Coluna social, onde já se viu? Que interesse tenho em saber quem casou, quem separou, quem viajou, quem inaugurou o quê.

Lugarzinho danado, viu, vou te contar! Fico pensando se não seria melhor ter continuado em Recreio, pelo menos tão pertinho de Teófilo Otoni que era! Para mim era como se a gente vivesse naquela cidade grande. Muita confusão nas ruas, loja atrás de loja, gente que nem formigueiro. E a buzinação? Vixe, uma barulheira danada. E a mistura de cheiros? Cheiro de gente, cheiro de fruta, fumaça de carro, cheiro de flor.

Tanto reclamei que madrinha autorizou minha vinda para cá. Mais sossegado, ela disse, e você ajuda Neuzinha, ajuda cuidar dos meninos, da casa, fica como o braço direito dela, e ainda ganha um salário bom no final do mês. E olha, pode voltar quando quiser, pega o ônibus lá cedinho, vem, fica aqui, fica uns dias e volta, de ônibus mesmo porque todo dia tem. Fácil, fácil, madrinha dizia.

É verdade que eu vim, é verdade que sou braço direito de Neuzinha, verdade que ajudo na casa, na roupa, na comida, com os meninos. Mas o salário não é bem verdade. É um tiquinho assim, Neuzinha e o marido me dão de um tudo, isso é bem verdade; e a volta para Recreio só aconteceu uma vez. Madrinha liga sempre, pergunta se está tudo bem, pergunta em tom de riso se eu já casei; eu sorrio e digo que não, que ainda não. Ela me lembra que o aniversário está perto, que ela vem mais padrinho e espera pelo menos que tenha um bolo daqueles de fubá com erva doce. Eu fico pensando, quase quarenta. Quarentona serei, dentro de poucos meses. E o marido que é bom? Neca.

No rádio toca uma belezura de música! Gosto das sertanejas, dão um calor no peito, uma saudade que a gente nem sabe de onde sai, uma vontade de ter alguém pra abraçar, beijar. Fico pensando essas coisas, aumento o volume, só eu em casa, gosto de ficar sozinha e canto junto com Bruno e Marrone. Até a hora do almoço aproveito do sossego que tenho, só eu e Deus. E canto alto!

…e agora
que faço eu da vida sem você
você não me ensinou a te esquecer
você só me ensinou a te querer
e te querendo eu vou tentando me encontrar
vou me perdendo
buscando em outros braços teus abraços
sozinho no vazio de outros passos
no abismo em que você me atirou
e se atirou…

A vida da gente é um fazer de coisas que não acaba nunca. Cedinho, levantar; banho morno. Café no fogo, leite fervendo, pão de queijo no forno. Ligar o rádio, colocar a mesa, chamar os meninos para a escola. Esperar pelo horóscopo, separar a roupa para passar, separar a roupa para lavar. Saem todos e fico só, penso tanto na vida que cabeça chega doer. Todo dia tudo sempre igual. Se o dia tem sol, o céu azul, penso no mar; se ameaça chover fico imaginando como será a chuva caindo no mar. Nunca vi uma foto, nem em filme nenhum, mas acho que deve ser uma beleza. Fico pensando em uma cortina branca caindo sobre aquele mundão de água. Ah, o mar…

Tocam a campainha e o carteiro entrega a correspondência Nada de mais: uma revista semanal, contas para pagar, propaganda de curso de computador… uma carta para mim? Quem vai me escrever? Nem veio escrito quem mandou. Quem será? Leio com calma: para senhorita Belkiss de Lima, Rua General Osório, 17, Belém do Desterro, Minas Gerais. Começo a tremer, é pra mim mesmo. Pego uma ponta de faca pra não rasgar o envelope listadinho de amarelo e verde. Retiro com cuidado uma folha de papel dobrada em quatro. Cheiro para ver que cheiro tem, nada. Cheiro de papel, só. Começo a ler…

Vitória ( ES), 17 de abril de 2004.

Prezada Belkiss,

Li na revista Formidável seu recado para um pescador-em-alto-mar. Acho que você falou foi para mim. Tudo que você escreveu se encaixou como uma luva. Quero travar melhor conhecimento com você, quem sabe para futuro compromisso. Sou filho de mineiros, minha mãe é de Santana do Norte e meu pai de Governador Valadares, onde eu nasci. Mas vim muito pequeno para o Espírito Santo e já me considero capixaba, mas o coração é mineiro! Tenho pouco estudo mas recebi, na condição de pobre, boa educação. Sou honesto, trabalhador, mas não encontrei ainda a minha cara metade. Gostei do que você escreveu lá na revista, achei sua foto bonita, você ficou bem naquele retrato. Demorei um pouco a criar coragem, mas hoje peguei da caneta para enviar essas palavras. Espero sua resposta para continuarmos esse diálogo. Segue uma foto com dedicatória especial, espero que seja do seu agrado.

Atenciosamente,

Reynaldo Gonçalves

Eu tremia feito vara verde. E estava morta de vergonha. E se alguém na cidade tivesse lido a revista? Iam saber que era eu, o endereço, a foto. Como pensei que ninguém fosse responder, falei pra Zélia, minha amiga, que era uma brincadeira e por isso mandei a carta para a revista. E agora? Mostro pra Zélia? Respondo? Escondo de Neuzinha? Meu Deus, o que vou fazer? Mas pode ser que a revista saiu há muito tempo. Ele mesmo disse que custou criar coragem. Tomara, tomara mesmo que ninguém tenha lido. Minha boca, sequinha. Minhas mãos tremem pra pegar água no filtro. Coração bate que nem tambor. Desligo o rádio, quero barulho não. E agora, o que é que eu faço?

À noite, depois da novela das oito Belkiss vai se deitar.

Se vira na cama, de um lado para o outro. Levanta, acende a luz, pega a carta no armário, lê pela décima vez. Cheira a carta e sente cheiro de mar. Beija o envelope listadinho de amarelo e verde. Separa a foto, prega na parede e fica olhando, olhando.

Sua alma é uma festa só. Seu coração se enche de flores, fecha os olhos e sente-se boiar num mar muito azul. Sente o calor do sol sobre seu corpo miúdo. Nenhum cansaço essa noite, nenhuma dor em lugar nenhum. Uma onda de esperança invade seus pensamentos e ela pensa que poderá ser feliz, sim. Procura uma revista antiga, no meio de seus guardados, junto à caixa de costura. Fotos da capital capixaba, as pontes, as praias, o Convento da Penha, Guarapari, velas ao mar, se um daqueles barcos fosse dele? Reynaldo, nome de príncipe, ela pensa

Um sorriso se instala em seu rosto e não sai… É madrugada quando ela volta a apagar a luz e se deitar. Os lençóis limpos e macios, o cheiro de macela saindo do travesseiro, a manta xadrez, de lã, presente de madrinha; a noite fria, o pijama quentinho, de flanela. Belkiss se sente confortável. Lá fora faz frio, mas o seu quarto hoje lhe parece mais aconchegante que nunca. Enquanto reza, antes de dormir, o mesmo sorriso lhe enfeita ainda o rosto. Ela pensa na viagem a Guarapari. Se tudo der certo, vai até pagar promessa na escadaria do Convento da Penha, ah e com gosto! Vai ser bom ter alguém a quem se dedicar, vai ser muito bom ter alguém a quem entregar tanto afeto guardado, vai ser bom demais da conta se Reynaldo e ela…

O terço lhe cai das mãos, um ressonar profundo lhe sai do peito, e nessa noite Belkiss sonha com arco-íris, manhã de primavera, capela branca, véu de noiva e flores de laranjeira!

*
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