Eu não estou bem com isso

Obra: Dmitrievskiĭ, V. K. – 1958
Victória Farias

Um dia, entre uma guerra e outra, meu bisavô escreveu para a minha bisavó: “Até esta data, nada recebi de você, ainda continuo a dizer-te que a última carta que tenho sua é de 30 de Dezembro, se o carimbo não me engana. Por isso e por tudo isso, eu estou muito aborrecido com você.” Minha bisavó, com oito filhos em cada braço, não tinha mãos livres para responder ao “teu nobre marido” Antônio, que peregrinava por Juazeiro durante um conflito na Bahia.

O que me faz pensar sobre a passagem do tempo. Depois de um (?) ano atípico, o tempo, que se expressa por marcas de expressão nas faces dos desavisados que sorriem muito para as pequenezas da vida, parece ter tomado um aspecto diferente.

Para o meu bisavô, um intervalo de 30 dias entre uma carta e outra da sua amada Natália, beirava o absurdo. Para os contemporâneos, que aprenderam a lidar com idas rápidas ao supermercado e esporádicas a farmácia, um mês sem se comunicar com os amigos próximos se tornou aceitável.

Eu me lembro bem de quando fui avisada do lockdown e minha ida presencial ao trabalho se tornou desnecessária. Se não fosse “por isso e por tudo isso”, eu diria que foi ontem.

Para nós, os sobreviventes da negação e das pretensões políticas alheias, que nos servem de entretenimento barato – pago diariamente pelo contribuinte – só nos resta aprender a lidar com as voltas do relógio e com dois ou três fios de cabelos brancos que despontam da cabeça cansada. 

O nada atípico e totalmente previsível ano pré-eleitoral de 2021, como manda o figurino, começa hoje. Com tudo aberto e direito a música ao vivo, garçom na mesa e duas bebidas ao preço de uma, vamos nos servir de preocupações em um mundo que tinha tudo para dar certo.

Enquanto seguimos procurando vida longe, continuamos perdendo vida aqui. A vida que foi privada de viver. De pulsar em janeiro e ser só alegria em fevereiro. E “por isso e por tudo isso”, eu não estou bem com isso.

*
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Victória Farias

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