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Eu não quero um cachorro

Tais Civitarese

Uma vez, tivemos um cachorro. Tudo devidamente acordado após um contrato feito no Word. O marido, que teve a ideia, cuidaria dele. Adestramento, banho, comida, passeios e visitas ao veterinário.

Na época, achava que não tinha vocação para cuidar de ninguém além dos meus pacientes. Mal cuidava de mim mesma. Mal mesmo, porque não fazia exercícios físicos e era assídua consumidora de miojo. Ter um animal era impensável. Filhos, nem estavam no horizonte.

E aí, o Nicolau chegou. No início, achei-o horroroso, grotesco. Ele se movia rápido, era agitado, fazia ruídos estranhos, embora ainda fosse apenas um filhote. Confesso que rejeitei-o e fiquei pensando em como seria lidar com aquele novo ser em minha casa.

E aí, houve uma reviravolta. Ao chegar do trabalho, varada de fome rumo à cozinha para preparar o meu jantar empacotado, era Nicolau quem me esperava. Era ele quem me recebia e, pior, parecia contente ao me ver. Assim, me apeguei. Apesar do contrato, fui eu quem cuidei dele. Alimentei-o, levei-o para passear, tratei seu abscesso perianal e sua lesão de córnea, limpei  quase todas as suas regurgitações, frutos de uma respiração inadequada somada à agitação costumeira e ao estômago cheio.

Ao acarinhá-lo, eu o apertava tanto que ele se traumatizou e passou a me morder de vez em quando. Mesmo assim, eu o amava.

Até que engravidei. E aí, o ato de cuidar de alguém se elevaria a um patamar bem mais extremo. Além de mim, dos pacientes, das responsabilidades e do cachorro, haveria um outro ser, dessa vez, completamente dependente da minha pessoa. Precisava me dedicar. A essa altura, o marido já estava tão envolvido em seu trabalho que a única coisa que fazia em Nicolau era carinho. Do resto todo, quem cuidava era eu.

O bebe nasceu, cresceu e começou a andar. No início, tratei-os como irmãos. Deixava um ao lado do outro, no tapete colorido, emborrachado, de brincar.

Porém, um dia, a avó de meu marido veio visitar o bisneto. Por algum motivo insondável, Nicolau avançou sobre ela e a mordeu. Caíram gotas de sangue de avó sobre o porcelanato e aquela imagem me chocou. Concluí que era demais. O cachorro-fera que talvez eu tenha traumatizado, primeiro com rejeição e, depois, com excesso de amor e apertos, passara a representar perigo. Imagine se mordesse o bebê? 

Assim, o peludo foi morar na casa da minha sogra, que é realmente uma casa, com jardim, quintal e outros cães com quem ele poderia brincar. Concluímos que foi melhor assim. Mas não me orgulho dessa história. 

Minha sogra não queria mais um cachorro. Eu nunca quis um cachorro. Meu marido quis um cachorro, mas quis ainda mais trabalhar noite e dia. Fomos atrapalhados no cuidado com ele. E no final das contas, transferimos a responsabilidade…

Hoje, com os filhos crescidos, o assunto “cachorro” voltou à tona. Confesso que ainda não me sinto pronta. O fato de “ser bom para as crianças” não me diz muita coisa. Cão não é brinquedo ou bicho de pelúcia. Entre os amores inesperados, nesse caso, prefiro uma adoção consciente.  

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