Tais Civitarese
Desde que vovó faleceu, dez meses atrás, tenho refletido muito sobre sua vida. Tento extrair cada mensagem, cada legado que a experiência dela me deixou.
Ao fazer isso, é inevitável me lembrar de meu avô. Eles foram casados por 40 anos até vovó se separar, quando tinha 62. Vovô não era exatamente um homem tranquilo. Vovó resistiu ao lado dele e criou os seis filhos. Quando não aguentou mais, saiu de casa carregando uma mala e foi morar no apartamento que tinha na cidade vizinha. Por sorte, muitos anos antes, ela tinha adquirido esse imóvel para as filhas morarem enquanto estudavam. Vovó salvou sua própria vida. Deixou tudo para trás. A casa com cerca de caliandra. As memórias. Suas coisas. Perto de estar viva, aquilo de nada importava.
Vovó foi muito forte. As filhas a ajudaram. Ela viveu mais 25 anos depois disso e teve, durante esse tempo, uma vida cheia de alegrias. Como ela gostava de dizer, foi “seis vezes à Europa”, passeou muito, recebeu tanto carinho. Houve até alguns pretendentes de brincadeira que adorávamos arrumar para ela. Quando algum senhor a elogiava, logo entrava no rol dos candidatos. E ela, com seu jeitinho doce e levemente atrapalhado, conquistava sempre muitos elogios.
Para alguém que nasceu em 1933, foi uma revolução a maneira como ela transformou sua vida. Ela encontrou ajuda e amparo em uma aliança entre mulheres: sua família. Infelizmente, ainda hoje, veem-se histórias como a dela que nem sempre têm um bom final.
Vovó teve a oportunidade de se livrar de um relacionamento marcado por muitas dores. Ela não sucumbiu. Salvou-se, venceu um câncer na sequência e viveu, com todas as letras. Trabalhou em seu ofício de costureira por mais alguns anos. Conheceu os bisnetos. Frequentou um grupo da terceira idade onde fez muitas amigas. Elas viajavam aos fins de semana, assistiam a aulas diversas, iam a sítios, faziam festas. Dançavam. Ver o vovó dançar foi uma das cenas mais gratificantes que pude presenciar.
A única coisa que ela não suportou mais fazer após se separar foi cozinhar. Anteriormente, ela cozinhava como ninguém. Porém, criou um bloqueio. E somos nós, as filhas e netas, que tentamos reproduzir suas receitas árabes, como o arroz marroquino, sem jamais chegar aos pés de seu tempero. Ela já tinha se doado demais. Havia chegado o tempo dela própria nutrir-se de tudo do que havia se privado por longos anos.