Victória Farias
Tem um crocodilo na minha sala de estar. Ele não estava lá antes, e francamente, não sei como veio parar aqui. Não que isso me preocupe. O lugar já foi ocupado por elefantes brancos e girafas na Amazônia. Afinal, é só um crocodilo.
A convivência é tranquila. Vez ou outra ele reclama de uma dor de cabeça, ou uma escama se solta de sua cauda. Digo “ele” porque não tenho certeza de quem seja. Faltam-lhe traços humanos ou qualquer coisa que remeta a um rastro de memória.
Diz coisas, mas o que diz não lhe pertence. Repete porque foi mandado, e está ocupado demais palitando os dentes depois de comer um peixe para pensar por si só.
A única coisa que eu sei é que não é um jacaré. As especificações foram bem claras, só se pode se tornar uma de duas coisas: ou um crocodilo ou uma mulher barbada. Mas não me importo muito com a espécie, contando que não coma meus passarinhos.
Ele apareceu aqui na última semana, estava assustado e nada possuía. Entrou e sentou, como quem entra e senta em casa. Colocou os pés na mesa de centro e pegou o controle remoto da televisão com a destreza de quem faz esses movimentos repetidamente, todos os dias.
Não houve interrogatório, sem perguntas. Comemos juntos e ele encheu o box do banheiro de água para passar a noite. Pegou um sol na janela no outro dia e diz que ainda não se sente seguro o suficiente para sair.
A minha única observação, enquanto tirava os primeiros pelos de barba que despontavam no meu rosto, foi pedir para que não colocasse o volume da televisão alto demais.
Não queria atrair a horda de crocodilos que rodavam a vizinhança. Afinal, só tinha controle remoto – e box – o suficiente para um.