Todos os meses, ao apresentar aos meus pais a caderneta do colégio, minha barriga doía num misto de preocupação e medo. Por mais que eu fosse boa aluna, estudiosa, ótimas notas, havia um problema sério: quando o aluno se comportava mal, fazia coisas que não devia, conversava demais, ou perturbava as aulas, a nota em “Comportamento” vinha em vermelho, nota sete. Eu não sabia como explicar aquele 7! Procurava algumas desculpas esfarrapadas que não convenciam muito.
– A sua sorte – meu pai dizia – é que as outras notas estão boas, senão… – raspava a garganta, assinava o boletim e eu, então, respirava aliviada – até o mês seguinte.
Era bem verdade que eu conversava muito. Ria muito. Agitava muito e arrastava uma legião de seguidoras. Entretanto, era muito boa aluna em todas as disciplinas, menos em matemática – sempre detestei! Para mim, ir à escola era uma festa. Em alguns dias eu me comportava como um anjo, em outros a anja dava lugar ao capetinha e aí…
Num final de semana fui para a casa de uma prima que tinha uma filha, a Lile, alguns anos mais nova e com quem eu adorava brincar. A casa era enorme e onde deveria dormir a empregada, foi feita uma casinha de brinquedo, linda, pintadinha de rosa, cheia de bichinhos coloridos e coraçõezinhos vermelhos. Muitas vezes eu ia no sábado e voltava no domingo, quando meu pai ia me buscar, já de noitinha.
A semana começara sem nenhuma novidade. Na segunda-feira, pela manhã, fui pra escola. Voltei, almoçamos todos juntos e o meu pai me disse:
– Termina seu almoço. Come tudo, depois você vem comigo. Tenho uma coisa pra você.
– O quê??? – Pensei que eu havia feito mais uma “arte”.
– Vamos ao quintal, lá em baixo. No pé de manga.
Quando chegamos e subi no pé de manga, descobri umas ripas de madeira clara, colocadas meio por acaso e não entendi. Na bifurcação de dois galhos mais grossos ele havia colocado uma madeira, encaixada perfeitamente nos troncos. Um pouco acima, mais dois outros galhos também com uma madeira colocada. Uai, o que seria aquilo?
– Senta aí. Na mais baixa.
Obedeci.
– Coloque suas mãos na madeira mais alta.
Obedeci ainda sem entender muito bem.
– Viu? Agora você já tem um lugar diferente pra fazer seu “Para casa”.
– Aqui? Como assim… Na árvore? É igual uma carteira da escola?
– Isso mesmo. Você não precisa trazer a pasta (escolar). Traz o caderno e o estojo. Antes, aponte os lápis, veja se tem borracha. Se precisar colorir alguma coisa, pegue a caixinha de lápis de cor e traga também. Gostou? Quero só ver se de agora em diante não vejo mais nota vermelha naquela caderneta.
Desci da árvore e subimos em direção à casa.
Corri até o meu quarto. Abri a minha pasta de couro marrom. Peguei o caderno de “Dever de casa” e o estojo. Gritei pela minha mãe pra que ela viesse ver de onde eu faria, a partir de agora, os meus exercícios da escola. A partir de hoje, eu teria uma árvore só pra mim. Nunca pensei nisso… uma cadeira, uma carteira, na árvore!
A tarde estava quente, mas ventava um pouco. Sentadinha em meu novo escritório eu podia pegar com a mão as folhas, os galhos e as mangas. Eu olhava pra cima e via o céu bem azul. Eu podia ver as casas da rua de baixo. Podia ver o rio Piracicaba, amarelado, lá no fundo. A ponte. As casas da rua Siderúrgica.
Meus irmãos chegaram. Subiram os dois e dividimo-nos entre as duas ripas e outros galhos. Fizemos uma pequena comemoração enquanto minha mãe recomendava-nos cuidado e atenção.
Aquele espaço era único e todas as minhas amigas e os amigos dos meus irmãos foram conhecê-lo. Os galhos tornaram-se outros bancos e a gente cantava. Gritava. Torcia pra que o vento soprasse forte. Queríamos, além da novidade, um pouco de emoção e perigo. A sensação de liberdade vinha associada ao desejo de voar. A alegria dava origem aos gritos. Compartilhar aqueles galhos, a sombra, as frutas faziam de mim uma anfitriã e tanto. Quem não queria conhecer minha árvore?
Hoje, vejo as crianças insatisfeitas com tudo que têm e com tudo que ganham. Eu mesma, moradora de apartamento, nunca pude construir para os meus filhos uma casa na árvore, mas procurei, na medida do possível, proporcionar-lhes alegrias assim, inusitadas e significativas.
Meu pai, meio sério, muito calado, um pouco sisudo, foi um mestre na arte de me proporcionar pequenas alegrias que se tornaram gigantes conforme o tempo foi passando. Hoje consigo entendê-lo perfeitamente. Deleto as pequenas tristezas e sobrevivo feliz à custa de tudo que me foi dado, com todo amor que lhe era possível dar.
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