A pomba - Pixabay

A pomba

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A pomba – Pixabay
Leonardo Paixão

Era uma terça-feira, dia pouco especial. Daqueles que lentamente somem da memória. De pouco em pouco se dissolvem nas lembranças esquecidas. Não fosse ela, essa terça seria mais uma. A vida é feita de dias comuns. Viver é algo extremamente repetitivo.

Talvez por isso ela tenha vindo ao prédio. 

Havia um pedaço da garagem em reforma. Um local desconfortável. Chão quebrado, poeira, entulhos. Estar “em reforma” não depende de que a mesma aconteça. O status dura enquanto houver o desalinho. Aqui, há mais de um ano, nenhuma alteração.

A pomba não escolheu um local quebrado. Adoentada e envelhecida, caminhava em círculos na vaga central. Fazia frio. Talvez tenha buscado o calor do motor do carro recém-chegado. De penas desgrenhadas e sujas, trôpega. Estaria na muda? Ou era um animal “em reforma”?

De início, tentou bicar alguns miolos de pão jogados pela vizinha idosa. Com o passar dos dias o olhar ficou mais distante. Sua nova casa, a vaga do apartamento 501. Com o tempo já não reconhecia o alimento. Sozinha, sob o Volkswagem do quinto, aguardava.

Nos últimos dias parecia arrancado da pomba o plugue de conectar ao mundo. Andava sem rumo, dois passos e uma cambalhota. Não uma cambalhota engraçada. Era trágica. Aguardamos. Morrer parecia tão, ou mais complicado que o próprio viver. Era como se saísse deste mundo por um buraco mais fino do que ela, apertado, trabalhoso. Até que um dia, finalmente, se foi. O corpo contorcido de uma partida custosa jazia, como sempre, na vaga do quinto andar, longe da bagunça da obra.

Era terça. Os últimos dias não haviam sido tão comuns. A agonia da pomba deixou uma pequena marca na memória, como um papelzinho nas páginas de um livro. Em algumas horas seu corpo já havia sumido. “Deve ter sido um vizinho que tirou antes que comece a feder”.

Já bastava de dias incomuns. Agora o dia a dia poderia, confortavelmente, retornar à sopa uniforme de memórias inespecíficas.

*

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52 comentários sobre “A pomba

  1. Olhos de quem vê o lado mais simples, e as coisas mais completas de dias comuns..que exatamente esses que fazem a vida todos os dias.
    Vivemos dias repetitivos mas sempre aprendendo o real valor dessa vida.
    Obrigada..por ser tão generoso e dividir esse momento.

  2. Bem profundo! Faz pensar sobre a vida, os dias comuns e principalmente sobre a morte. Solitária e triste!
    As memórias… que se apagam com o passar dos tempos e as gerações.

    Tire mais um coelho da cartola! Muito bom! Obrigada por compartilhar conosco!

  3. Amo crônica! Quantas habilidades hein, @leopaixao? Transformar o dito “normal”, do cotidiano, em algo interessante, nao é pra qualquer um. Parabéns! Abraço!

  4. Talvez nesse vazio de interiores, temos matado o tempo, levando a vida sem a percepção que tudo continuará independente de nós. Preciso é que as oportunidades de crescimento sejam vividas, pois assim elas terão feito seu papel em nós.

  5. Fiquei comovido. É um sinal dos tempos, a gente está mais sensível. Mas de vc, de quem sigo as receitas que adoro, mineiro que sou fora das Minas há muitos anos, fiquei mais fã ainda.

  6. Nossa. Que tristeza.
    Ninguém levou a pomba ao veterinário????
    O ser humano se julga muito superior mesmo…
    Quero ver quando estiver vc andando em círculos esperando a morte te descansar.

  7. Leo, sou professora de Língua Portuguesa e apaixonada por Literatura. Para mim, escrever é uma das mais belas artes que existe. Beleza essa que vem do interior de nossa alma, nasce de forma natural. E isso não é para todos . Mas, você o fez com maestria, doçura e encantamento. Um verdadeiro cozinheiro de palavras. Parabéns! Além de excelente Chef de cozinha, revelou-se um grande escritor.

  8. É, Léo Paixão, você sabe fazer, sabe dizer e sabe escrever. Sabe também sorrir e traduzir, sintetizar num prato, o comum que vira iguaria; o cotidiano insosso num registro poético. Na fila dos dons você foi agraciado com muitos. Sobretudo, com a sabedoria para usá-los bem.

  9. Além de um excelente Chef consegue escrever maravilhosamente bem e criar outras realidades. Parabéns! Que você reconheça o talento que existe em você assim como eu.

  10. Incrível! Gostei demais. Senti no âmago a perda da pomba. Talvez, por ter perdido a pouco um ente querido e outro está a caminho do encontro com o Pai. Perfeita a analogia com o nosso dia-a-dia. Encantada com você. Sucesso e paz.

  11. Terça feira tornou-se especial. A pobre pomba encontrou um lugar onde sentiu-se segura e acolhida. Reconheceu naquele lugar, algo que a fez viver a intensidade da sua morte…

    1. Muito triste! Li por curiosidade, mas fui surpreendida pela sensibilidade do texto. Mais um talento do “embaixador ” de nossa mineiridade! A cada dia nos surpreendendo. Parabéns !

  12. Essa visão com o coração dos detalhes e das fragilidades do cotidiano não é para qualquer um. A morte da pomba não foi em vão!

  13. A observação da fragilidade do outro precisa de um olhar refinado e sensível….para descreve-lo com tanta realidade mas de maneira respeitosa.
    Me fez pensar.
    Obrigada.

  14. Profundo…revela a fragilidade de vida, onde viver ou morrer estão próximos…nós leva a refletir viver um dia de cada vez.. parabéns pela sensibilidade e simplicidade!!!

  15. Arrastei pra cima nos stories, Na certeza de que algo bom poderia vir dali, afinal você já mostrou que passeias por várias vertentes com a mesma criatividade e beleza com que cria seus pratos. Arrastei! E… Gratidão é a palavra, sem clichê, gratidão pela vida, pelos dias, pelas família e até pelos problemas insistentes, de uma vida comum, repetitiva e tão, tão rica em paz! Obrigada Léo por compartilhar receitas pra vida!

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