Mofo

Mofo – Foto: pixabay
Tais Civitarese

Outro dia me disseram que eu deveria ter uma funcionária em casa em tempo integral “para buscar água para os meus filhos quando eles tivessem sede”. Noutro momento, quando contei que retornaria ao meu trabalho, sugeriram que, ao contrário, eu me tornasse assistente do meu marido, pois havia, dentre suas funções, “muitos formulários chatos para preencher”.

Ao ouvir tais ladainhas, pensei que nunca errei em ser quieta e apreciar a companhia dos livros. Nem Brontë nem Jane Austen, com todos os seus brocados, jamais me diriam isso. 

É incrível perceber como algumas pessoas vivem até hoje a mentalidade das capitanias hereditárias. Se sempre achei Belo Horizonte uma cidade por demais provinciana, 2020, apesar de suas lições e ressignificações, não conseguiu me convencer do contrário.

Essas falas vieram de alguém próximo e até querido. Contudo, trazem tantos conceitos abomináveis – sim, abomináveis -, que me levaram a pensar se realmente esse amigo já me enxergou como pessoa algum dia – e não como um espectro de sinhá do século XVIII… 

Primeiro, se meus filhos – que tem 4 e 7 anos – sentirem sede, eles mesmos irão buscar seus copos d’água. Jamais teria alguém com o único intuito de servi-los, ao risco de perder a chance de ensinar-lhes o valor da independência. E ela começa nas coisas pequenas. 

Segundo, minha vida sempre foi pautada nos estudos. Era essa a prioridade para os meus pais e, até eu virar mãe, também para mim. Formei-me em medicina pela UFMG e fiz residência de pediatria no Hospital das Clínicas, também da UFMG. Depois, estudei transtornos de aprendizagem na França, fiz pós-graduação em nutrologia e curso agora uma segunda pós em psicanálise da infância. Ainda que eu não tivesse feito nada disso, teria do mesmo jeito meus próprios sonhos e desejos. 

No entanto, um colega considera que se meu marido está apertado no trabalho, eu deveria esquecer minha vontade e dedicar-me à parte chata, preencher os formulários.

Isso é reflexo de uma cultura que cheira a mofo (e nos adoece) há muito tempo. Algo que não cabe mais, sobretudo em um ano que chacoalhou o mundo. Se a peste nos assombra vez ou outra, o patriarcado é também epidêmico. Seus males estão claros nas notícias de jornal e espirram sem máscara em conversas corriqueiras. 

Amigo, atualize-se. 

A peste sempre vem para desgraça e ensinamento dos homens. Aproveite as lições do flagelo para que seu pensamento não se alinhe com as doenças de séculos atrás…

 CAMUS, Albert. A Peste. 25 ed. Rio de Janeiro: Record, 2019. 288p.

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