Nem sei mesmo porque me lembrei do João!
Não falei nele, não vi nada que me fizesse recordá-lo; faz tempo que não sonho com ele; não remexi minha caixa de cartas e muito menos revi suas fotos, escondidas e bem guardadas, já bastante amareladas pelo tempo.
Estou sozinha em casa, dou uma espiada nos jornais, tento ler um pouco antes de dormir. Preparo um chá de camomila e me sinto relaxar a cada gole. Troco o CD. Imagino que Vivaldi possa me trazer para dentro de mim. O som dos violinos me enche de uma ternura inexplicável e aí meu coração me diz que posso salvar-me da loucura que nos acomete a todos, sem exceção, neste mundo de hoje. Ainda há salvação nas canções, nos poemas, nos poucos corações cheios de amor, nos raros namoros ao luar, nas transas selvagens, beijos calientes, mordidas, arranhões, gritos e sussurros, de couper le souffle! Há de haver…
Se João ainda andasse por aqui talvez a vida não me estivesse sendo assim tão dura. Teríamos do que rir, sobre o que falar. Ele com aquele seu jeitão italiano, sua voz de tenor, aquelas mãos enormes, grosseiras e ao mesmo tempo tão ternas. Fazia-me tão bem o seu colo. Fazia-me tão bem ouvir seu respirar ruidoso, por vezes cheio de tosse. Era um pigarro persistente que resistia aos anos mesmo depois de parar com o cigarro.
Ah, João, se você estivesse aqui para me fazer companhia, assistiríamos juntos aos jornais na TV, jogaríamos cartas após o jantar, falaríamos da vida alheia, você me contaria pela milésima vez sua infância na Itália, cantaria para mim com sua voz de tenor. Sinto muito a sua falta, João. Falta de mergulhar em seus olhos claros, de me deitar quietinha em seu peito, ouvir bater o seu coração. Sinto falta do seu cheiro, cheiro bom. Eu te amei tanto, João e agora…
João era assim, diferente. De uma simplicidade que encantava. Nada em João me incomodava. Não mudaria nada nele, nem um defeito sequer. Às vezes, punha-me a pensar se era ele deste mundo, ou talvez, quem sabe, do outro, daquele que nem mesmo sabemos se existe ou não. Tinha pensamentos estranhos, tão diferentes dos meus.
João adorava a primavera: durante esses meses os ipês amarelos eram puros raios de sol, muitas vezes enchendo o pátio interno do casarão como um imenso tapete dourado. Mais de uma florada, algumas vezes duas, três… não sabíamos explicar por quê. Eram suas flores preferidas e João se divertia deitado na rede, esperando que seu rosto se cobrisse das flores que caiam das árvores. Eu ficava pensando em beija-flores, em João semente, em João ponto de interrogação. E assim, sem mais nem menos, volto no tempo. Meu coração vai se enchendo de um calor gostoso, desses que invadem o peito trazendo mansidão e paz…
Fazia tempo que minha vida era um vazio só. Mas a verdade é que depois que me separei do segundo marido, ficou-me um amargo na boca, um frio no sentir e meu olhar para o mundo transformou-se por completo. Fui minguando aos poucos. Fui secando. Ficando árida. Não por paixão. Não por saudade, mas por desânimo e preguiça de um recomeço. Havíamos passado bons anos juntos, nem tenho do que me queixar, mas fomos nos distanciando tanto que no final ele estava aqui e eu no Japão. Mesmo assim foi doloroso, dolorido, as meninas sentiram muito a falta do pai, falta que durou dois anos só e logo depois foram encontrando um jeito de se falar: ele morando em Salvador, onde lecionava na universidade federal e elas aqui, nas Minas Gerais.
Eu optei por continuar murchando, por dentro e por fora. Me olhava no espelho e sentia pena de mim. Ah, isto era o mais triste! Me achava tão feia, acabada, um caquinho, uma coisinha de nada. E de miúda que sempre fora, me encolhia cada vez mais. Fui perdendo tudo: peso, viço, olfato, paladar, desejos, ilusões, virei um quase nada. Aos poucos fui deixando de visitar amigos, de sair no final de semana, recusando convites para casamentos, aniversários, achava tudo uma chatice. Fui me fazendo de vítima, uma dor aqui outra acolá.
Abria mão de qualquer situação para que elas, as meninas, pudessem viver a plenitude dos seus vinte anos. Sentia certo alívio quando o telefone não tocava, quando ninguém apertava o interfone e mais aliviada ainda quando a campainha da porta parecia nem existir. O silêncio me era extremamente precioso! Inês me perguntava sobre depressão. Eu dizia, “não, isto é meu modo de ser”. Fico triste não, gosto de ficar sozinha, sem ninguém para me incomodar. Mas ela insistia para que eu tomasse fluoxetina, santo-remédio. Eu sorria, carece não; preciso de jeito nenhum…
Assim o tempo foi passando, passando, eu cada vez mais quieta em meu mundo descolorido, sem graça, sem flores, sem festas. Fui ficando insensível também. Gostava muito de ficar só, em casa, lendo e fazendo palavras cruzadas. Cozinhar eu não gostava, nunca gostei e não gosto até hoje. Raramente via um programa na TV, achava tudo pobre por demais, sem conteúdo algum. Aprendi a fazer crochê. Começava de um tudo e terminava nada. Aprendi a tecer tricô, não passei de um xale que dei de presente para minha irmã Fany. Retomei a prática da yoga, a meditação, voltei ao livro de orações, recomecei a rezar, e aos poucos fui me transformando em uma beata: sempre que podia corria para igreja. Logo eu, que nunca fora muito de missa, sentia um alívio diante do altar; como se minhas dores fossem diminuídas pelo ambiente silencioso, respeitoso e majestoso da catedral. E ele lá pregado na cruz, bem que poderia me ajudar, me socorrer. Me socorre, Ó Deus!
As meninas insistiam tanto para que eu parasse com aquela ideia ridícula de me fazer mais idosa, mais doente, mais rezadeira, mais infeliz! Mas a minha infelicidade tocou em um ponto estranho: mais triste eu ficava, menos ia sentindo o cheiro e o gosto das coisas. Meu olfato se foi, assim como a minha alegria de viver. Paladar, quase não tinha. Pouco me importava o que comia: doce, salgado, ácido ou amargo. Tudo me era tão igual! Se foram também, o meu ânimo, minha energia vital, meu brilho.
Tudo andava ruim por demais. Sem dinheiro, sem olfato, sem paladar e sem sono. Pouco ânimo, pouca alegria, pouco dinheiro. Resolvi vender umas terrinhas. Coisinha pouca – um pequeno sítio que há muito tempo ninguém visitava. Na verdade desde que nos mudamos de Solidão nunca mais aparecemos por lá. Além do mais, ficava ao norte, pertinho de Milagres, pouco mais de 20 minutos de carro pela estrada vermelha e poeirenta. Muita seca. Terra ruim onde há algum tempo plantamos até café.
Cheguei na casa da minha irmã disposta a resolver tudo em uma semana: procurar o cartório, conferir a papelada, ver o preço do terreno e procurar um interessado. Entretanto, apesar da minha disposição inicial uma semana não fora suficiente para tudo resolver. Voltei para a capital. Vim rezando para que aparecesse um comprador, bom e honesto, fácil de lidar e disposto a pagar pelas terras o preço justo, nem um centavo a mais. Tinha muita esperança de que o comprador apareceria, eu precisava muito daquele dinheiro, muito mesmo. Rezei mais de dois meses sem parar, em casa, na igreja, no trabalho, dia após dia, debulhando o terço, até que Deus um dia me ouviu.
– Dona Heloísa, telefone pra senhora.
– Já vou – gritei saindo do banheiro. – Quem é? – Perguntei. Isa falou assim, é de Milagres.
– Ah! Alô, sim, sou eu, pois não, como vai o senhor. É deveras, estou vendendo sim. Sei. Conhece Seu Caldeira? Do cartório? Pois é, tá tudo com ele, o senhor pega as informações e depois, se for do seu interesse, liga de novo, podemos marcar para ver o sítio, assim o senhor conhece, vê se é do seu agrado. Tá bom, nada a agradecer, para o senhor também. – Foi a primeira vez que falei com João.
Rezei mais um mês sem parar. Podia tanto dar certo. Havia ligado para a minha irmã, sondando quem era o interessado, o tal homem, e ela me havia dado a ficha completa. Fiquei esperando que ele voltasse a ligar, nada. Resolvi dar um pulo até Milagres e de lá até Solidão. Aproveitava o feriado de Corpus Christi e quem sabe, não dava um empurrãozinho nas coisas paradas.
Fui de ônibus. Sentia-me insegura ao dirigir sozinha e as meninas tinham compromisso, cada uma viajando para um canto, com amigos de faculdade. Também tinha outra coisa, achava até bom aproveitar a viagem de ônibus. Me dava um entendimento das coisas, via tudo de um jeito tão calmo, com o tempo ali passando devagar, momentos de muita reflexão. Assim eu achava, e pensava também que estando sozinha colocava melhor minhas ideias no lugar. Admirando a natureza, as cores, as coisas e pensando na vida, nas pessoas, em tudo que já havia se passado, no que acontecia no presente e o futuro, como seria? O que nos reservava o futuro? Pensava nas meninas. O que seria da vida de cada uma delas? E da minha vida? Não sabia nada de nada. A gente não sabe nunca de nada, nada mesmo.
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