– Sandra, você está parecendo curiango!
Era assim que meus pais se dirigiam a mim quando não dormia cedo.
Quando assisti ao filme Bacurau pela primeira vez, pesquisei o que Bacurau significava. O resultado surpreendeu-me e seu outro nome, curiango, trouxe-me à memória a fala de meus pais. Conhecido também curiango-comum, ju-jau, carimbamba, amanhã-eu-vou (em Minas Gerais), ibijau, mede-léguas, acurana e a-ku-kú (nomes indígenas – Mato Grosso) – seu nome é onomatopaico e deriva de sua vocalização. A ave é citada na música “Amanhã eu vou”, composição de Beduíno, com parceria de Luiz Gonzaga (que transcrevo no final da crônica).[¹]
O filme nos informa que é um pássaro noturno “brabo”. Outras descrições sobre a ave relatam que é ágil para agarrar suas presas. O que é muito metafórico para as pessoas que habitam Bacurau.
O longa é intenso e permite muitos olhares e entendimentos, visto a quantidade de crônica e vídeos sobre ele; ganhador do prêmio de Cannes. Porém, quero chamar atenção para três arquétipos que transitam pela película: o guardião, o curandeiro o e o guerreiro.
O arquétipo é definido pelo psicanalista Carl Gustav Jung como míticos personagens universais que residem no inconsciente coletivo das pessoas.
A guardiã – Dona Carmelita (Lia de Itamaraca) é a matriarca que tem descendentes de pedreiro à cientista e esclarece: “mas ladrão nenhum”. “Ela é uma bruxa”– diz sua amiga Domingas (médica encenada por Sônia Braga). O filme se inicia com o seu enterro e segue num enredo que permeia vida-morte-luta-morte-vida. Do seu caixão transborda água, regando assim o chão, contrapondo a morte com a vida – anunciando o mistério que viria – ou seria o efeito do psicotrópico?
A localização de Bacarau é no sertão do Brasil, onde o acesso água é motivo de lutas, como é mostrado no roteiro. A filmagem aconteceu no município brasileiro de Parrelas, no seu povoado de nome Barras, região do Seridó no Rio Grande do Norte, quase divisa de Paraíba. Barras é um desses povoados que praticamente possuem somente uma rua.
Dona Carmelita reaparece no momento da invasão, e, dessa vez, revelando-se como sua guardiã. Informa ao intruso e estrangeiro: “aqui não!”
O curandeiro – Damiano (Carlos Francisco): senhor das ervas e do psicotrópico; esse que transporta os habitantes de Bacurau para outra consciência – de união, luta e anestesia da dor. A vila, diferente de outras, é um lugar de liberdades. As cenas e fala dos casais formados na trama mostram isso. Damiciano e sua companheira aparecem nus em sua cabana, nos preparos e cuidados com as ervas medicinais, isso no momento da chegada do inimigo. O cenário é de uma leveza encantadora. Corpos maduros e nus.
O guerreiro – Lunga (Silvero Pereira), o exilado da comunidade que retorna para defender seu povo. Sua fala: “se vocês precisarem, eu volto”. Vestido até os dentes com armas e destemido ele retorna. Defende seu povo aos modos do lendário Lampião. Lunga também é chamado de cangaceiro queer [²]. Silvero explica que manteve um personagem com unhas pintadas e olhos pintados, também com tatuagens. Kleber Mendonça Filho, um dos diretores do filme, esclarece que: “como os melhores heróis do cinema, Lunga seria um herói não puro”. Mesmo se apresentando como o guerreiro herói, ele mostra sua imperfeição (?) ou fragilidade.
Bacurau já foi definido como um filme de gênero (mas que escapa, ao meu ver) e distópico. Para mim é um desses filmes que você assiste e muitas cenas permanecem vivas na sua memória. Ele proporciona uma experiência metafórica, simbólica, política; enfim, que permite vários entendimentos e interpretações. Quero ainda vê-lo muitas outras vezes. É uma obra prima! E na penumbra da noite o Bacurau canta: amanhã eu vou.
Era uma certa vez
Um lago mal assombrado
À noite sempre se ouvia a carimbamba
Cantando assim:
Amanhã eu vou, amanhã eu vou
Amanhã eu vou, amanhã eu vou
[…] [³]
[¹] https://www.wikiaves.com.br/wiki/bacurau,
[²] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/23/cultura/1569265659_610072.html
[³] https://www.youtube.com/watch?v=H3GSNHxpB14
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