Um Sintoma Especial

Rosangela Maluf

A pandemia já durava cem dias. O mal que conseguira se espalhar pelo mundo todo, fazia com que aqui, em Serra Escura, seus efeitos absurdos e alarmantes se mostrassem ainda mais intensos e diversificados, a cada dia.

Num primeiro momento foram todos – especialistas e sem nenhuma especialização – para a televisão, para os jornais e para as redes sociais informar à população sobre os sintomas iniciais. E todo mundo decorou a pequena lista: tosse, coriza, febre superior a 38º C, dores no corpo. Em seguida, após algumas poucas semanas, foram acrescentadas a perda do paladar, do olfato, dores nas pernas. Em seguida, falou na TV um neurologista e afirmou que sequelas de ordem motora poderiam ser também identificadas. Nos casos das pessoas idosas os riscos seriam maiores, mais intensos; a cura mais demorada e mais difícil, o tratamento longo, muito longo e consequentemente, as mortes em número ainda mais assustador.

Por tudo isso, quando Dona Hermínia começou com dores no corpo sua vizinha foi logo correndo buscar um termômetro. Ao constatar febre alta, foi até o Zépedro da farmácia perguntar sobre o caso da amiga. Dor de garganta? Sim. Nariz escorrendo? Sim. Dores no corpo? Febre? Sim. – Acho bom  correr com ela pro hospital. Pra mim, é a Covid 19. Olha, vai primeiro no Posto de Saúde; se não for grave o caso dela, pode cuidar em casa. Já sai de lá com os remédio e tudo!

A fila era imensa. Uma atendente gaga tentava a todo custo, organizar a fi fi la! Os mais i i i dosos, por aqui, desse la la la do! Havia choro. Filhos tentando passar os pais à frente. Cada um exagerando o quanto podia na gravidade dos sintomas. Dona Hermínia esperava quietinha. Sua vizinha e amiga também. Nove, dez, onze, meio dia…o sol rachando, um calor de matar e era hora de tomar uma água, comer um pão de queijo pelo menos. 

– Tem cantina aqui? 

-Tem, mas tá fechada. 

– Tem uma lanchonete por perto? Um bar? Um lugar aonde a gente possa comer um trem, tomar um café. 

– O que eu sei é que tá tudo fechado, mas tem dois minino que passa com um balaio de pão de queijo e uma garrafa de café. Quem der sorte, come!

Deus foi tão bom, mas tão bom, que a gente deu sorte. O café estava quente ainda, mas o pão de queijo estava murcho, seco e frio. Melhor que nada. Voltamos pro nosso lugar no banco dos fundos, perto da porta. O ar que entrava ajudava a espantar o vírus evitando que contaminasse mais gente.

A atendente chamou o vin vin vinte e oito! Nossa ficha era trinta e dois. Faltava pouco. Foi quando a Dona Hermínia se levantou. Reclamou do calor. Tirou a blusa ficando só de camiseta. O rosto pegando fogo. Ficou vermelha. Manchas se espalhando pelo colo, pelos peitos, pelos braços. Perguntei se aquilo seria também sintoma da doença. Ninguém sabia. Alguém disse que sim. Outro disse que não, de jeito nenhum. 

O suor que ensopava o seu rosto foi tomando uma coloração esverdeada. Como? Sim. Um líquido verde. As pessoas que cuidavam do distanciamento social foram se aproximando usando a mão sobre a máscara para aumentar a proteção. Todo mundo queria ver o líquido colorido manchando a roupa, deixando marca nas axilas e empapando o lençol que conseguiram, às pressas, jogar por cima daquele corpo que tremia sem parar.

A atendente veio ver o que se passava. Não entendeu nada e perguntou: – Alguém sabe se isso aí é um novo sintoma da do do doença? Ninguém respondeu. Ninguém sabia.  Ficha vin vin vinte e nove. Vão separar esse bo bo bolo de gente. Cada um em se se seu lugar mar mar marcado!

Não se sabe quem foi que deu o grito:

– Olha ali, não é uma pena? Duas? Gente, aquilo é uma asa? Igual de pássaro? Só que maior, muito maior!

– Olha, parece que é. Nascendo debaixo do braço daquela dona ali.

– Mas isso não pode ser o vírus. Nenhum médico daqui de Serra Escura falou disso. Nem vi na televisão. O vírus faz nascer asas? Como é que pode?

–  E eu que tenho Feicebuc, Instagram e Uatizap… nunca vi ninguém falar disso. Nunca. 

– É asa mesmo? Gente, melhor chamar o médico. Pode ser grave. Pode ser contagioso. Já pensou, todo mundo aqui pegar asa???

 A atendente chamou: fi fi ficha 30! Encaminhou o senhor que esperava ali e chegou mais perto pra ver as asas da dona Hermínia. – São asas mesmo – ela disse, sem gaguejar.

Ah, quem estava lá viu o que nunca mais vai esquecer. As asas foram crescendo até ficar do tamanho dos braços de um adulto. Dona Hermínia sentou-se. Olhou pra cima. Os olhos apertadinhos pra enxergar melhor. Os lábios quase formando um bico. Abriu os braços. Abriu as asas. Bateu uma, duas, três, quatro vezes e saiu pela porta, derrubando as pessoas que esperavam do lado de fora. Primeiro, voou baixinho. A pouco mais de um metro do chão. Mas, depois foi tomando gosto, foi botando força e subiu acima do telhado. Todos os doentes saíram pra ver. As salas ficaram vazias. Ninguém falava um nada. Assustados. Olhos arregalados. Sem entender o que acontecia ali. Dona Herminia voando no céu azul, sem nuvens. Ventava muito naquela hora. Ela parecia mesmo um pássaro. Não se ouvia nem um pio.

Dona Hermínia ainda voava quando seis canais de TV chegaram ao Posto de Saúde; três deles internacionais – da Espanha, da França e dos Estados Unidos. Fotógrafos. Cinegrafistas. Repórteres transmitindo ao vivo. Jornalistas entrevistando qualquer um que houvesse presenciado o fato. Surgiram os cinco vereadores da cidade. Todos chegaram de uma só vez. Logo depois o prefeito, reclamando do tumulto. Lembrou que o uso da máscara era obrigatório, mas ninguém se importava. Queriam fazer selfies, mandar notícias pelo uatizap…

Surgiu no céu um helicóptero: era o Governador, querendo marcar presença na pequena cidade que ele sequer imaginara que existisse. Junto com ele o Secretário da Saúde com mais dois médicos, todos vestidos de branco.  O movimento crescia e já não cabia mais ninguém por ali. Um jatinho se aproximou com tão pouca habilidade, que quase causou um acidente com a Dona Hermínia. Era o Presidente que, sem noção, acenava antes mesmo que o aviãozinho pousasse. Quando desceu, tropeçando nas escadas, foi vaiado. Uma meia dúzia gritou “Viva o Presidente”…

Já passava das cinco horas quando o sol se escondeu, de vez, por trás da serra escura. Dona Hermínia, já em terra, descansava enquanto os flashes espocavam. Os celulares, todos eles, sem exceção, queriam uma foto, duas, dez, além de selfies com as demais celebridades presentes. Os médicos ainda discutiam como era possível aquilo tudo. Efeito colateral de algum medicamento? Uma nova sintomatologia a ser estudada? Uma significativa modificação genética ainda não identificada? O que mais poderiam esperar do comportamento do coronavírus? E se fosse mais um sintoma a se espalhar pela cidade? Seria exclusivo dos maiores de sessenta de cinco anos? Ou não? Aquele ar de calma e tranquilidade da senhora que voou, era uma condição passageira ou duradoura? Será que já existiria algum relato em outro país? Que caso intrigante…

E depois de realizado o único teste que chegara a tempo na cidade, e feitos os exames de sangue e da secreção nasal, dona Hermínia testou negativo!

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