Da janela do meu quarto, avisto uma obra. Em dois meses de quarentena, ela segue de vento em popa. Um dia, fui até lá e conversei com alguns pedreiros. Como médica, me senti na obrigação: nenhum de máscara. “Vocês deviam usar, mesmo trabalhando”. “Eles pedem pra gente usar, mas ninguém usa”, foi a resposta. Mais tarde, vi um homem engravatado caminhando entre as escavadeiras. Também sem máscara.
Nas semanas mais paradas da cidade, a obra seguia firme. Não teve um dia sequer em que não houvesse trabalho ali. Assisti à demolição das casas antigas, à retirada do entulho, ao nivelamento do terreno, ao preparo da fundação do prédio.
Instalaram caixas-d’água, trouxeram guindastes monumentais. Reformaram a calçada em frente e ergueram uma suntuosa portaria de vidro, com fotos do projeto nas paredes e vasos com plantas de plástico. Lá dentro, uma recepcionista aguarda as pessoas atrás de um balcão. Sem máscara.
Fico pensando nesse oásis que nem a pandemia abalou. Nesse terreno que o coronavírus aparentemente não atingiu. A vida ali continuou como se nada tivesse acontecido.
Penso também em outras obras que foram construídas dentro da calmaria das casas. E que a real obra desse momento seria exatamente paralisar a construção habitual diária. Mudar a direção…
Onde a obra continuou como antes, simplesmente, não houve obra alguma. A obra real foi construída no respiro, na interrupção. Ali, perdeu-se a chance de operar sob o efeito coronavírus. De sentir a pressão do bicho e de se aprender algo com isso. Pessoas foram expostas. Será que há coisas maiores que um pandemônio? Certamente, há interesses maiores que a saúde das pessoas.
Ali era uma ilha que não foi atingida pelo coronavírus. Desde sua “fachada imponente” que venderá ilusões superfaturadas, não foi avistada sequer uma máscara que pudesse macular os sonhos. Pelo andar da carruagem, em breve se instalará a placa metálica com o nome do empreendimento: “Exclusive” qualquer coisa. Ou – minha preferida – “Morada Premium”.
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