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O Missal de Madrepérola

O MISSAL DE MADREPÉROLA

Rosangela Maluf

Um dia, fui criança. E no primeiro ano escolar, junto às outras crianças de sete anos, faria a primeira comunhão em conjunto. Naquele tempo comemorava-se a ocasião em grande estilo, era um motivo de orgulho para os pais e grande alegria para todos nós.

Lembro-me bem do vestido lindo feito pela Tia Ruth: era branco, de organdi bordado, com nesgas de tecido furadinho e fitas, muitas fitas. A gola era alta como convém à monarquia ou à realeza, babados e fitinhas, as mangas curtas e cheias; e luvas que vinham até o meio do braço, chamavam-se mitenes! Era preciso usar três anáguas para que, ao caminhar, toda as saias dançassem ao som dos hinos litúrgicos que acompanhavam nossa ida até o altar.

Vejo as fotos e fico maravilhada com tudo aquilo, digno de uma cinderela, uma princesa, uma rainha! Entretanto, a parte mais encantadora era o cerimonial que nos preparavam: como caminhar, o olhar direto, o missalzinho em uma mão, o tercinho na outra, cuidado pra não escorregar com as luvas, todo cuidado era pouco. 

Os hinos delicados, cheios de amor por aquele Cristo que receberíamos naquele dia eram entoados pelo pequeno coral da igreja, afinadinho que, acompanhado pelo órgão tocado por dona Guilhermina, enchia de alegria a igreja de São José Operário. A cerimônia era emocionante para os pais que lá estavam, comovidos, e pelas catequistas que nos prepararam para tomar o corpo de Cristo, em comunhão.

Dona Zélia era nossa vizinha na rua Carijós e foi dela que ganhei de presente um missal: escrito em uma linguagem docemente infantil me encantou levando-me a ler e reler inúmeras vezes os textos em vermelho e preto; as gravura lindas, com tinta dourada faziam com que os anjos adquirissem vida própria querendo voar, sair da folha de papel. 

Eu ficava horas olhando as gravuras. Lia e relia as histórias, as orações, os pequenos salmos, encantada com o cheiro daquele livrinho com capa nacarada, de madrepérola, como me explicou a mamãe. Em uma das gavetas da minha cômoda eu guardava, junto com o missal, uma caixinha vazia de sabonetes Madeiras do Oriente – eu adorava aquele cheiro! Era para mim uma das maiores preciosidades do meu tesouro infantil! Era lá que eu guardava o meu Deus!

Quantas vezes fui e voltei na relação com este Deus. Me distanciei dele e me reaproximei inúmeras vezes. Muitas vezes confiei e várias outras não confiei. Algumas vezes, nada entreguei e nada agradeci. Depois voltava e confiava novamente, me desculpava, me entregava e agradecia novamente. Que Deus era aquele, que pai injusto era aquele que permitia tanta tristeza para uns e tanta felicidade para outros? Um pai não pode tratar os seus filhos de maneira diferente, filhos e filhas são iguais!

Aquele Deus me amparou nos momentos de dor imensa, de sofrimento inexplicável, me fortaleceu nas dificuldades encontradas ao longo do caminho. Sustentou-me quando me senti perdida, sem chão, sem ter com quem contar. Mas também questionei muito. Fiz perguntas para as quais aquele Deus não tinha nenhuma resposta. 

Qual o seu sentido de justiça, eu queria saber? Por que dois pesos e duas medidas? Minha mãe dizia que era blasfêmia e o meu pai me proibiu o cinema e o Grêmio quando resolvi que só iria à missa para continuar cantando no coro da dona Luzia do cartório – Deus de amor nós te adoramos neste sacramento/ corpo e sangue que fizeste nosso alimento!

O tempo passou. Saí de João Monlevade, fui pra capital. Saí de Belo Horizonte, fui estudar na Bélgica; voltei, depois de dois anos. Me casei, fui morar no Rio de Janeiro. Voltei para Belo Horizonte, me separei, fui morar em Londrina, no Paraná, voltei mais uma vez para a capital de Minas e já num outro relacionamento, fui viver no Rio Grande do Sul.

A cada dois meses eu voltava a Minas para ver a minha mãe, idosa de 90 anos e rever minhas dezesseis amigas do coração com quem eu me encontrava cada vez que voltava às Gerais. 

Numa destes retornos a João Monlevade fui ajudar a mamãe a organizar seu guarda roupas – lá na última gaveta, dentro de um saquinho de malha, escondidinho em uma caixa de perfume, encontro o missal com a capa de madrepérola, em parte já descolada.

O mesmo cheiro. O mesmo brilho. Bastante amarelada pelo tempo, mas ainda legível. As gravuras ainda exerciam efeitos mágicos sobre mim. Os raios luminosos. Todo aquele dourado. As orações que tantas vezes repeti sem saber bem o porquê! Os anjos que me protegiam de todo mal, amém. O triângulo entre nuvens de onde o olho de Deus me seguia, vigiava, me guardava, tomava conta de mim. E não me deixava cair em tentação. As orações para que eu me arrependesse e pedisse perdão pelos meus pecados. Pecados? Uma criança de seis anos? 

O que foi feito daquela criança que morria de dor de barriga ao se confessar ao padre dizendo: briguei com meus irmãos, desobedeci aos meus pais, falei nome feio? De outros pecados, não me lembro! A penitência era sempre a mesma e fico imaginando a falta de paciência dos padres atendendo àquela fila enorme de crianças a repetir a mesma ladainha.

Lágrimas me vêm aos olhos; sinto saudades da criança questionadora que fui; sinto falta do colo da mãe pra onde sempre corria cada vez que o mundo parecia desabar. Lembro-me das missas aos domingos, na matriz de São José. A família toda vestida como para uma festa. Meu pai, minha mãe, meus irmãos. Eu, no coro infantil da missa das nove. Dona Luzia regia e nós cantávamos com a maior pureza d’alma. O véu branco de renda nas cabecinhas inocentes e respeitosas. A comunhão, agora permitida…

Com um aperto no coração recordo-me dos vizinhos da rua Carijós; lembro-me, nome por nome, dos moradores de cada casa daquela rua – éramos uma família. Minhas amigas, os amigos dos meus irmãos. No verão, as brincadeiras de rua. Os pais colocavam as cadeiras nas calçadas enquanto os filhos brincavam por ali, todos juntos. Bambolê, futebol, rouba-bandeira, queimada, finca… era um tempo bom, muito bom!

Não sei onde foi parar aquela criança…em que castelo se escondeu, em que veleiro se ancorou, o que foi feito do que sonhou? Olho para minha mãe que não entende muito bem a minha emoção e pergunta “- o que foi”? Eu digo: – nada não, mãe, tudo bem!

Recoloco o missalzinho na caixa. Pensando bem, desisti de levá-lo comigo, melhor que fique ali, quietinho. Que não me desperte tantas lembranças, nem me relembre a menina sonhadora que fui, que nem me encha mais os olhos de lágrimas e que me permita constatar que o tempo passou, que eu cresci, amadureci e sofri, como todo mundo.


Fecho a gaveta e meu coração também se fecha, pelo menos naquela noite.

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