(em homenagem à obra de Freud, O mal-estar na civilização, de 1929)
Como num tabuleiro de War, o mapa-múndi estampa o ataque implacável dos exércitos inimigos. Eles avançam, fronteira por fronteira, rumo à conquista do mundo.
Só que agora o objetivo não é conquistar somente 24 territórios. Até quando contei, eram 151 países dominados. E, enquanto esta partida não termina, seguimos aprendendo lições de estratégia, pois contar com a sorte nos dados é coisa de principiante. E de certos presidentes.
Em 1929, Freud dizia das fontes de sofrimento do ser humano: (1) aquelas que se originam do seu próprio corpo, condenado à decadência, (2) aquelas que provêm do mundo externo, “com forças de destruição esmagadoras e impiedosas” e (3) aquelas oriundas dos relacionamentos com os outros homens. E esses exércitos viróticos, na sua resistência obstinada e na sua severa propagação, nos ameaçam dessas três formas.
Nossos corpos e nossa saúde estão vulneráveis, sem defesa, correndo o risco de perecimento precoce. A classificação de “pandemia” evidencia o potencial ameaçador que vem da natureza, nunca completamente “dominável”. E, se sofremos com nossos relacionamentos, sofremos mais com o isolamento social.
O desejo agora é, tão logo possível, abandonar a condição de eremitas que nos foi imposta e pacificamente aceita. Ansiamos voltar para os encontros, os beijos, os abraços. Voltar para as “dores e delícias” que os relacionamentos reais estimulam. A alteridade nunca fez tanta falta.
E é daí que fica evidente a “necessidade de civilização” de que falou Freud. Esta pandemia verdadeiramente nos coloca diante de alguns mal-estares, sempre latentes, desde que o homem resolveu abrir mão de parcela de sua liberdade e prazer individuais em prol da segurança e da sobrevivência que a “civilização” permite.
O primeiro mal-estar diz respeito à necessidade de se aprender com a nossa própria história e à tendência a recusar avanços científicos. Há mais de um século tivemos aqui no Brasil a conhecida “Revolta da Vacina”, em que a população do Rio de Janeiro se insurgiu contra as reformas sanitárias conduzidas por Osvaldo Cruz (1904).
Um dos objetivos era erradicar a varíola através da vacinação obrigatória da população, que reagiu provocando verdadeiros levantes populares. Hoje a importância da vacina é tão líquida e certa, assim como é, a despeito de algumas posições obscurantistas, a necessidade de isolamento social no caso do coronavírus.
O segundo mal-estar desta pandemia diz respeito à primazia do coletivo sobre o indivíduo. Ela nos coloca diante da necessidade imperiosa de rompermos com a lógica individualista e aprimorarmos nosso senso civilizatório em prol de uma coletividade.
Toda esta crise mundial expõe, na sua camada inferior, a queda do individualismo em vários sentidos, pois atinge a todos e é somente através de esforços sinérgicos, coletivos e cooperativos que sairemos dela.
O terceiro mal estar diz respeito à necessidade de questionamento sobre nossos modos de vida, especialmente a vida urbana do Ocidente, que é de onde escrevo. Por aqui, ainda parece chique dizer que não temos tempo.
Uma vida hiperativa, cheia de atividades e estímulos, sem qualquer tempo para o ócio e para o outro, ainda é muito comum. A vida da imagem, da mídias e das redes sociais, do consumo excessivo de objetos e de informações. A vida líquida, de incertezas e que muitas vezes nos confunde em relação ao essencial.
E o último mal-estar evidenciado pela pandemia é a própria primazia da pulsão de vida. Esta batalha é, em última instância, a luta dos homens pela sobrevivência e pela superação da sua condição de finitude. Muitas vezes, preferimos manter a ilusão de que somos imortais.
Recusamos a morte como condição humana e não temos espaço e tempo adequados para viver a dor do luto e conversarmos sobre a morte. Não somos imortais, mas temos cotidianamente a chance de nos eternizarmos.
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