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Éramos todos Guilherme

Foto: Stockbyte – Éramos todos Guilherme – Getty Imagens
Guilherme Scarpellini

É mesmo surpreendente este mundo vasto mundo da internet. Dia desses, escarafunchando a rede interplanetária de computadores, encontrei um acervo de 400 mil obras de arte em alta resolução, um portal que reúne crônicas dos maiores escritores brasileiros, uma biblioteca virtual que disponibiliza valiosíssimos manuscritos digitalizados e até um mapa indicando a padaria mais perto da minha casa.

Mas o que causou verdadeiramente espécie foi o resultado de uma busca no Google por um termo, digamos, demasiadamente familiar — o meu nome. 

Esperava encontrar ali apenas um punhado de textos antigos que ao longo dos últimos anos assinei em colunas e portais de notícias. E os encontrei todos.

Mas encontrei também um documento que trazia no alto um timbrado em que se lia em tom ameaçador — Ministério Público de Minas Gerais. 

Nem pestanejei. Baixei o arquivo em PDF e fui logo dando um Ctrl + F para descobrir onde eu entrava nessa história de promotoria.

E o chão se abriu sob os meus pés. Foram localizadas nada menos que quarenta e três menções a este imaculado e inofensivo nome que minha mãe escolheu me chamar, ao que invariavelmente conclui ser o próprio investigado.

Entrei em parafusos. Pensei nos últimos pecados. Eram muitos, desisti dos pecados. Passei então a rememorar os pequenos delitos, como o furto de Wi-Fi do vizinho, as visitas ao camelô do chinês e as incontáveis ofensas ao presidente da República.

Pedi perdão ao meu fiel escudeiro – o Santo do Pau Oco. O que me trouxe certo alívio. Só então pude deter-me à leitura atenta do dossiê. 

Logo identifiquei que os fatos imputados datavam de 1907. Tempo de vacas gordas em que eu parecia ter adquirido, por dois contos e quinhentos e cinquenta mil réis, um charmoso sobrado localizado no centro da provinciana Araxá.

O imóvel de arquitetura requintada, identificado como pensão Tormini, pertenceu a uma ilustre mulher conhecida por desconcertante beleza. Seu nome era Ana Jacintha de São José – a Dona Beja. 

Como dizia o documento, em primeira providência sob a posse da antiga – e a verdadeira – casa de Beja, eu tratei de instalar uma glamourosa platibanda no alto da fachada, com o fatídico ano 1907 cravado em números monumentais.

Era mesmo uma beleza — vi a foto. Mas era também um crime contra o patrimônio histórico.

Pois os traços originais daquele monumento foram terrivelmente descaracterizados. Pena: detenção de seis meses a dois anos. E eu agora estava encalacrado com a Justiça. Algo teria de ser feito. 

Esbaforido, liguei para minha mãe e comuniquei que me entregaria às autoridades antes do cair da noite.

Ela então pediu que antes eu a escutasse com calma. E contou-me a história de um imigrante italiano que, endinheirado, adquiriu, no início do século 20, propriedades na promissora cidade de Araxá.

Era o meu tetravô, e chamava-se Guilherme Scarpellini. Como foi chamado também o meu avô, Guilherme Arcy Scarpellini. E depois, eu mesmo. Éramos todos Guilherme.

Mas essa encrenca com a promotoria não era deste que escreve. Põe na conta da história. 

Guilherme Scarpellini

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