Foto: Malte Mueller - Liberdade, mas...

Liberdade, mas…

Foto: Malte Mueller - Liberdade, mas...
Foto: Malte Mueller – Liberdade, mas…
Guilherme Scarpellini

— Um café longo e espuma de leite, por favor. Mas sem açúcar. E, ah! Um suco de laranja também. Mas só depois do café.

— Pra comer?

— Pão com queijo. Mas o pão é integral. E o queijo, branco. Tá OK? Que é pra não atrapalhar o treino. 

— Mais alguma coisa, senhor?

— Três ovos mexidos. Mas sem gemas. 

Zero Três tinha fome e mau humor. Pois a manhã não poderia ser mais extenuante. O Ministro ligou ainda cedo pra dizer que o rebanho estava em fúria. Só se falava num tal de especial de Natal. Nele, Jesus é gay. 

Tudo menos isso, pensou Zero Três. Ele não poderia se calar diante de tamanha blasfêmia.

Passou a mão no celular e começou a digitar no Twitter: “Somos a favor da liberdade de expressão, mas…”

— O seu café, senhor.

Interrompido pelo garçom com a bandeja na mão, Zero Três largou o celular no canto da mesa e serviu-se de café amargo, acompanhado de pão com queijo e ovos mexidos.

Matutou por alguns segundos, olhando de soslaio para o aparelho ao canto da mesa, enquanto se esforçava para digerir aquela conversa insossa de Jesus colorido. 

Em primeira providência, pensou em cancelar a Netflix. Mas lembrou-se de que a esposa assistia a mais uma temporada de Grey’s Anatomy.

Quis então cancelar o Natal. Mas o pai havia lhe pedido moderação. Disposto a não decepcioná-lo, terminou o café e voltou a digitar, mais comedido: “Somos a favor da liberdade, mas…”. 

— Já posso servir o suco de laranja, senhor?

Assentiu com a cabeça sem tirar os olhos da tela do IPhone. De repente, uma notificação do WhatsApp. Era o Ministro.

Ele havia gravado um áudio de três minutos só pra dizer que terminou de assistir ao tal do especial de Natal.

E o que viu era ainda pior. Jesus era adotado. Gay e adotado! Como pode? Dessa vez esses comunistas do Porta dos Fundos foram longe demais.

Zero Três abriu o editor do Twitter, pronto para disparar tudo o que estava preso na garganta – ou melhor, na ponta dos dedos: “Somos a favor da liberdade de expressão, mas…” 

  — O suco de laranja, senhor. 

  — MAS QUE SE F#D@!!!

Zero Três levantou-se e foi embora a passos largos. Mas não pagou a conta.

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