Till traz uma história dolorosamente verdadeira

Deveria existir um subgênero cinematográfico chamado “filmes revoltantes”. Nessa categoria, seriam enquadrados todos os longas sobre a luta de minorias por direitos, aqueles que mostram um passado não muito distante em que certos seres humanos não tinham as mesmas prerrogativas que outros. É nesse filão que se encaixa Till – A Busca Por Justiça (2022), que traz uma história triste e chega aos cinemas essa semana.

Criado em Chicago, norte dos Estados Unidos, o jovem Emmett Till (Jalyn Hall, de Shaft, 2019) passava pelas mesmas dificuldades que outros garotos de 14 anos e não percebia o racismo da mesma forma que acontecia no sul do país. Quando vai passear na casa dos tios em Money, Mississipi, se depara com um cenário completamente diferente, mas não tem maldade o suficiente para perceber o perigo que corria apenas por respirar – e ter a cor de pele “errada”.

Um dos crimes mais escabrosos dos EUA, o assassinato de Emmett transformou a mãe do menino inadvertidamente em uma ativista no Movimento pelos Direitos Civis. Mamie Elizabeth Till-Mobley não procurou encabeçar nenhum movimento, mas logo se tornou símbolo dele e teve grandes vitórias. O longa parte do assassinato e acompanha os desdobramentos do caso. Numa região onde o pai de família trabalhador, o juiz e o delegado eram igualmente racistas e protegidos por leis desumanas, o negro era tratado como uma coisa inferior.

É interessante perceber que, se o filme tem Mississipi no título, vem pela frente uma história revoltante envolvendo a luta por direitos civis. Assassinato no Mississipi (Murder in Mississipi, 1990), Mississipi em Chamas (Burning Mississipi, 1988) e Fantasmas do Passado (Ghosts of Mississipi, 1996) são alguns exemplos, e há personagens (e atores) em comum entre eles. O ativista Medgar Evers, por exemplo, aparece em Till e em Fantasmas, e Whoopi Goldberg está em ambos como atriz.

Tida como uma das principais esnobadas nas indicações ao Oscar 2023, Danielle Deadwyler (de Vingança e Castigo, 2021) faz um ótimo trabalho como Mamie e de fato merecia uma lembrança na temporada de premiações. Ela é o destaque em um ótimo elenco. O único ponto discutível é exatamente Hall, que vive o trágico Emmett. Talvez para acentuar a rotina feliz e tranquila que ele tinha em Chicago, com a mãe, sua atenção é um tanto afetada, parecendo viver em um conto de fadas. Nada que sobressaia. Mérito da diretora e corroteirista Chinonye Chukwu (de Clemência, 2019), que demonstra muita segurança e está apenas em seu segundo longa. Na medida do possível, ela dá leveza a uma história que é inerentemente pesada.

O ótimo elenco é um ponto forte em Till

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Ti West conta a história de Pearl em novo terror

Em agosto passado, tivemos, com grande atraso, a estreia de X – A Marca da Morte (X, 2022), longa de terror que prestava homenagem aos slashers dos anos 70 ao mesmo tempo em que trazia uma história original e curiosa. Um dos personagens vistos nesse filme chamou a atenção do público o suficiente para que o diretor e roteirista Ti West criasse uma história de origem. E a intérprete da tal personagem, Mia Goth, ajudou no roteiro, trazendo suas ideias a bordo.

Pearl, a velhinha de X, ganhou tamanho destaque que mereceu um filme homônimo (2022) para contar a história dela, e Goth foi mais uma vez convocada. Quando a encontramos, ela é uma jovem reprimida pela mãe (Tandi Wright, de Amor e Monstros, 2020) e obrigada a cuidar do pai doente (Matthew Sunderland, de Z: A Cidade Perdida, 2016). Morando em uma fazenda afastada, ela não tem muito com o que se ocupar além dos afazeres domésticos e de esperar pelo marido, que foi para a guerra. Seus únicos amigos são os animais da fazenda.

Duas possibilidades de mudança se abrem para Pearl e ela vai tentar de tudo para sair daquela cidadezinha. O galante projecionista do cinema local (David Corenswet, da série Hollywood) pode ser uma saída para a Europa, enquanto a cunhada (Emma Jenkins-Purro) traz a notícia de uma seleção de talentos de um grupo de dança da igreja. Os pais de Pearl, no entanto, são o entrave para que ela se torne a grande estrela que ela já se sente.

West e Goth parecem ter uma ótima sintonia, ele conduz a trama contando com o talento hipnótico dela. Juntos, eles criam uma atmosfera de suspense muito adequada e sabem bem onde querem chegar. A trama de Pearl é mais rica que a de X, apesar de mais lenta, e é igualmente satisfatória. Agora é esperar pela terceira e última parte da trilogia, MaXXXine, atualmente em produção.

Assim como em X, Mia Goth é o destaque em Pearl

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Bardo, de Iñarritu, navega entre real e fantasia em uma autobiografia

Em Hollywood, são cada vez mais presentes obras que tentam ser a biografia de seu autor, mesmo que de maneira não direta. Roma (2018), de Cuarón, Dor e Glória (2019), de Almodóvar, e o recente The Fabelmans (2022), de Spielberg, são alguns exemplos. Alejandro González Iñárritu parece seguir o mesmo caminho ao lançar a sua própria cinebiografia: Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades (Bardo, Falsa Crónica de Unas Cuantas Verdades, 2022), disponível na Netflix.

O longa acompanha Silverio Gacho (Daniel Giménez Cacho, de Club de Cuervos), jornalista e documentarista mexicano que volta a sua terra natal após ser um sucesso, e querido, no vizinho do norte, Estados Unidos. A narrativa não é propriamente linear, contando a história em ao menos três âmbitos relacionais bem claros: a de Silverio com seu país, com sua família e consigo. O roteiro vai do fantástico ao real em questões de minutos, mostrando a reflexão de Silverio sobre sua obra e, por que não, sobre a própria realidade social do México.

Essas escolhas acabam gerando uma sequência caótica, minimamente pensada para que o espectador possa entender (ou não) as questões que perturbam o personagem principal. Uma delas é a perda de um filho logo no nascimento, que permanece presente ao longo de toda a vida de Silverio e sua esposa. Essa ausência parece também ser uma constante na relação com um dos filhos vivos, que conversa com o pai ora em inglês, ora em espanhol, confundindo ainda mais a própria identidade do documentarista.

As relações pessoais são fortemente representadas na obra, mas as sociais permanecem o tempo inteiro em tela. Seja com a população local, que tenta colocar Silverio num patamar de ídolo, que ele recusa, ou mesmo nas feridas abertas históricas mexicanas. Bardo não é algo que possa ser classificado como uma história simples, mas é facilmente reconhecido como uma autobiografia de um diretor que foi até recentemente um dos mais celebrados da indústria do cinema nos EUA, agraciado com cinco Oscars na última década.

Iñárritu volta ao Cinema após sete anos e mostra um lado um pouco mais obscuro e reflexivo de si próprio que, ao menos em impressões iniciais, não parece entender ainda seu lugar como um mexicano bem aceito em um país que põe muros na fronteira com a sua terra natal.

Iñárritu e seu Bardo foram bem recebidos no Festival de Veneza

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Coreanos tentam matar o presidente em Operação Hunt

Famoso pelo mundo após sua premiada participação na série Round 6 (ou Squid Game), Lee Jung-jae já gozava de boa fama em sua Coréia natal desde meados da década de 90, quando estreou como ator na TV e no Cinema. Agora, ele faz sua estreia como diretor e produtor num projeto que vem sendo desenvolvido há cinco anos: Operação Hunt (Heon-teu, 2022), longa que chega aos cinemas essa semana.

O atraso na produção, devido a várias circunstâncias, permitiu a Jung-jae assumir a direção e mexer no roteiro da estreante Jo Seung-Hee, atuando também como produtor. Em maio de 2021, as filmagens finalmente começaram e o filme teve sua estreia oficial no Festival de Cannes de 2022. Para o Festival de Toronto, o diretor viu a necessidade de reeditar a obra para facilitar o entendimento da trama pelo público ocidental.

No começo da década de 80, temos três eventos reais importantes na história da Coréia do Sul que servem de base ao roteiro de Hunt. Em maio de 1980, calcula-se que até 600 pessoas possam ter sido assassinadas no chamado Massacre de Gwangju, quando a população dessa cidade tomou o poder para protestar contra a ditadura vigente. O exército chegou e conteve os insurgentes, matando-os, e os números verdadeiros ainda são debatidos.

Em fevereiro de 1983, um capitão da força aérea da Coréia do Norte desertou e pousou seu MiG-19 em Seul. Ele foi prontamente incorporado à força aérea do país e chegou a coronel. Em outubro do mesmo ano, houve uma tentativa de assassinato do presidente Chun Doo-hwan em Rangum, hoje Mianmar. O bombardeio causou a morte de 21 pessoas e deixou 46 feridos. Um suspeito preso confessou ser um militar norte-coreano, mas o país negou ser o mandate do atentado.

Não é necessário conhecer esses fatos para entender a trama, mas ajuda. O cenário político da Coréia do Norte do final dos anos 70 e início de 80 é complexo. Quando o filme começa, conhecemos dois chefes de unidades da agência de inteligência da Coréia do Sul. Park Pyong-ho (Jung-jae) lidera a equipe que cuida de assuntos relacionados a estrangeiros, enquanto Kim Jung-do (Jung Woo-sung, de Golpe de Sorte, 2020) fica à frente do grupo doméstico.

O passado dos dois, que já se cruzaram, traz alguma tensão, que aumenta bastante quando chega a informação de que há um traidor infiltrado na agência. Todos são suspeitos e as duas equipes passam a ser investigadas. Não vão faltar perseguições, tiros e explosões, tudo perpassado por intrigas políticas que dão um ar de seriedade a um filme que, no fim das contas, é divertido e bem feito, figurando bem no filão de ação e espionagem.

Apesar de um pouco longo, com 2h11min, Hunt passa rápido, mantendo a atenção do público, que pode ficar um pouco perdido em algum momento, mas logo se situa. Lee Jung-jae se firma como um grande talento do Cinema sul-coreano e seu longa chegou à quarta maior bilheteria de uma obra sul-coreana em 2022, além de levar um punhado de prêmios de associações locais. Como ator, estará na próxima série do universo de Star Wars, The Acolyte.

Quem procura ação não vai se arrepender

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Shyamalan traz estranhos que Batem à Porta

O novo filme do diretor, roteirista e produtor M. Night Shyamalan chega aos cinemas e todos já ficam apreensivos. Conhecido pelas viradas de roteiro que nem sempre funcionam bem, ele tem adaptado histórias de terceiros e o resultado melhorou muito, mostrando que seu maior talento é a direção criativa, e não a necessidade de enganar o espectador. Seu mais novo esforço, Batem à Porta (Knock at the Cabin, 2023), reforça esse aspecto. Se não é marcante como um Sexto Sentido (The Sixth Sense, 1999), ao menos não é ruim como um Fim dos Tempos (The Happening, 2008).

Mais uma vez estragando férias familiares, como fez em Tempo (Old, 2021) e A Visita (The Visit, 2015), Shyamalan nos apresenta à bonita família formada por Papai Eric (Jonathan Groff, de Mindhunter e Matrix Resurrections, 2021), Papai Andrew (Ben Aldridge, de Fleabag) e a pequena Wen (Kristen Cui). Em férias, eles alugam uma cabana isolada e esperam por dias tranquilos e de descanso. No entanto, quatro estranhos chegam e, como o título entrega, batem à porta.

O misterioso quarteto, formado por Leonard (Dave Bautista, o Drax dos Guardiões da Galáxia), Sabrina (Nikki Amuka-Bird, de Tempo), Adriane (Abby Quinn, de Adoráveis Mulheres, 2019) e Redmond (Rupert Grint, o Ronny de Harry Potter) traz uma proposta descabida e a família precisa tomar uma decisão. Como afirma o cartaz, a humanidade depende disso. Temos, basicamente, um cenário e um grupo reduzido de atores no tempo presente, mas flashbacks vêm e vão, mostrando como era a vida de Eric, Andrew e Wen até ali.

Como de costume quando se trata de um filme de Shyamalan, contar o mínimo é o melhor. Basta dizer que ele reescreveu um roteiro de Steve Desmond e Michael Sherman, ambos estreando no Cinema, e eles se basearam no livro The Cabin at the End of the World, de Paul G. Tremblay. Ou seja: não é um roteiro original de Shyamalan, que perdeu a mão lá em 2006 (com o pavoroso A Dama na Água). Fora a trilogia finalizada em Vidro (Glass, 2019), que estava traçada há anos, ele vinha cometendo graves pecados.

Batem à Porta começa criando uma atmosfera de tensão eficaz, mas nunca chega a decolar. Mesmo com boas atuações (até do limitado Bautista), ele segue morno em seus 100 minutos. Ao menos, o diretor não entrou na onda dos filmes longuíssimos, resolvendo sua trama relativamente rápido. Os personagens são interessantes, apesar de sabermos pouco deles, e conseguem prender o espectador. Dessa forma, temos uma experiência que passa longe dos traumas causados anteriormente.

A família feliz não sabe o que os espera

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Irlanda é quase um personagem no insólito Os Banshees de Inisherin

Seguindo uma linha psicodélica de histórias de um humor peculiar que só ele poderia bolar, Martin McDonagh ataca novamente na direção e roteiro. Os Banshees de Inisherin (The Banshees of Inisherin, 2022) vem arrecadando prêmios e indicações e finalmente chega aos cinemas brasileiros essa semana, após o anúncio dos finalistas do Oscar. Foram nove indicações, sendo quatro apenas no elenco. McDonagh foi lembrado como diretor, produtor e roteirista. Tudo muito justo.

Com um Oscar na sacola (Melhor Curta por O Revólver de Seis Tiros, 2004) e indicações por outros dois trabalhos (Na Mira do Chefe, 2008, e Três Anúncios para Um Crime, 2017), McDonagh se voltou para a Irlanda, terra de seus pais e onde viveu boa parte de sua vida. Com uma trama que funcionaria muito bem também no teatro, ele juntou velhos conhecidos e a encenou em uma ilha afastada. Mais uma vez, ele tem Colin Farrell e Brendan Gleeson, de Na Mira do Chefe, como principais.

Com nomes e paisagens típicos da Irlanda, o filme nos apresenta a Pádraic Súilleabháin (Farrell), um sujeito simplório que vive numa casinha com a irmã (Kerry Condon, de Três Anúncios) e tem como passatempo ir para o bar local beber e conversar com o amigo Colm Doherty (Gleeson). Num dia qualquer, Colm decide que não quer mais ser amigo de Pádraic e essa situação toma uma proporção enorme. Dá a impressão de ser uma ilha de fofoqueiros, mas é exatamente como acontece numa cidadezinha do interior do Brasil.

Com um elenco de irlandeses (que ainda inclui Barry Keoghan, de Eternos, 2021), não fica difícil situar excepcionalmente bem o espectador. O sotaque faz uma diferença essencial, assim como a cadência das palavras. Fica mais fácil entender os personagens e a realidade em que vivem, numa rotina repetitiva e cansativa. Não a toa, os quatro atores principais estão indicados ao Oscar (Farrell como ator principal, os demais como coadjuvantes). A trilha sonora, de Carter Burwell (frequente colaborador do diretor), também é importante até na caracterização dos dois (ex)amigos, e foi lembrada no prêmio.

Para os atores se destacarem tanto em um filme, os diálogos precisam ajudar, e essa é uma constante no trabalho de McDonagh. Frances McDormand e Sam Rockwell ganharam vários prêmios trabalhando com ele (em Três Anúncios). Os personagens soam como pessoas reais, por mais insólita que seja a situação, e logo passamos a nos importar com eles. Certamente, você conhece um Pádraic, um Colm, uma Siobhán ou mesmo um Dominic. Não com esses nomes, claro.

Kerry Condon começou a trabalhar com o diretor aos 17 anos, no teatro

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Chainsaw Man merece todo o hype que vem recebendo

Antes mesmo de estrear, Chainsaw Man (2022)  já era mania entre os fãs das animações japonesas. Especialmente nas convenções de cultura pop, banners e cosplayers  do personagem eram vistos em todos os lugares. Isso, por si só, já me deixou com um pé atrás. Afinal, episódios recentes mostraram que, muitas vezes, quanto maior o marketing ao redor de um filme ou série de TV, menos o produto vale essa divulgação (alô, atores de The Boys que passaram semanas criando expectativas para o decepcionante Herogasm, estou falando com vocês). Dessa vez, no entanto, a regra foi quebrada. Chainsaw Man é uma das coisas mais divertidas dos últimos anos e honrou a obra homônima de Tatsuki Fujimoto.

A série gira em torno de Denji. No começo de sua adolescência, ele perdeu o pai – a mãe já estava fora de cena. Pior ainda, seu progenitor tinha uma grande dívida com um chefão da Yakuza (a máfia japonesa) e caberia à Denji acertar as contas. Sem ter fundos para tal, ele é obrigado a aceitar um trabalho de caçador de demônios. Aqui é bom esclarecer que, nesse universo, as mais diversas criaturas demoníacas andam livremente pela Terra, sendo caçadas por departamentos públicos e agências privadas.

Enquanto nessa profissão, Denji encontra Pochita, um cão-demônio cujo traço mais característico é uma serra elétrica no lugar do focinho. A dupla acaba se tornando amiga, com Denji e Pochita caçando demônios juntos e dividindo seus parcos recursos. Quando chega aos 16 anos, as coisas se complicam ainda mais para Denji. Um demônio consegue seduzir seu patrão e, em troca de um poder gigantesco, exige sua vida. Denji e seu cão são atacados. Denji é morto. Pochita, às portas da morte, decide tomar o lugar, literalmente, do coração de seu melhor amigo.

Com isso, Denji não só volta à vida como se torna um ser meio humano, meio demônio. Sempre que necessário, ele consegue manifestar serras elétricas de seus braços e cabeça, juntamente com um rosto demoníaco. Obviamente, ele vai, agora, se dedicar ainda mais à caça de demônios, certo? Bom… Sim e não.

Denji acaba sendo recrutado pela principal agência governamental japonesa dedicada à caça de demônios e recebe uma oferta irrecusável: “ou trabalha conosco para sempre ou é executado imediatamente”. Entre a cruz e a espada, ele acaba optando pela primeira.

Apesar da descrição relativamente sombria acima, a verdade é que Chainsaw Man é uma comédia de ação deliciosa, recheada de sangue, tripas e situações insólitas. Denji é um personagem daqueles que têm o carisma reservado para os que, na definição de um dos personagens do anime, “tem alguns parafusos soltos”. Suas motivações são tão básicas e sem noção que acabamos nos simpatizando muito com ele. Todo o elenco de apoio, incluindo sua diretora, Makima, seu supervisor direto, Aki, e os demais caçadores de demônios de sua equipe – Power, Himeno, Kobeni e Arai – são bem construídos dentro do exagero característico da tradição das animações japonesas.

Com 12 episódios de cerca de 23-25 minutos cada, Chainsaw Man está disponível no serviço de streaming Crunchyroll. Vale muito à pena conferir e aguardar pela segunda temporada, a ser lançada em 2024.

Não são poucas as referências cinematográficas em Chainsaw Man

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Tár reafirma o talento de Cate Blanchett

Em uma entrevista, o diretor Todd Field (de Pecados Íntimos, 2006), que queria muito Cate Blanchett em seu próximo filme, contou que a agente da atriz disse que ela não teria disponibilidade pelos próximos três anos. Dirigindo, ele ficou tão chateado que bateu o carro. Sensibilizada, Hylda Queally mandou o roteiro para sua cliente e elas conseguiram ajeitar a agenda para Blanchett participar. O resultado, Tár (2022), chega aos cinemas brasileiros hoje, com seis indicações ao Oscar, incluindo três para Field e uma para Blanchett.

É preciso estabeler, de cara, que Tár não é fácil: nem a personagem, nem o filme. Trata-se da cinebiografia fictícia de uma grande maestro (como ela prefere) que, quando a encontramos, está em franca ascensão. Ganhadora de diversos prêmios e atual condutora da prestigiada Filarmônica de Berlim, ela frequentemente é convidada para palestrar, dar aulas, entrevistas etc. E todos querem trabalhar com ela, aceitando até posições menores do que buscavam.

Lydia Tár (Blanchett) tem uma vida aparentemente equilibrada, com esposa (Nina Hoss, de O Homem Mais Procurado, 2014) e filha em um apartamento cômodo e a atividade profissional em polvorosa. Algumas atitudes e decisões dela vão mexer um pouco nessa estrutura, usando aquele velho estereótipo do “gênio que é difícil de lidar”. Seria ela, além de muito competente, arrogante? Ou estaria apenas apontando a verdade sem papas na língua? Algumas sequências nos deixam com esse questionamento. Ora ela parece ser muito atenciosa, ora muito escrota. À medida que o filme avança, entendemos bem o que está havendo.

Difícil não se lembrar de Cisne Negro (Black Swan, 2010), guardadas as devidas proporções. O talento e a dedicação da protagonista lhe roubam um pouco da sanidade mental, o que até pode propiciar a criatividade e o desenvolvimento artístico. Até certo ponto. A diferença, aqui, é que há um peso maior na questão do caráter. Se tem uma atriz que dá conta de nos deixar com a pulga atrás da orelha, é Blanchett, que evita qualquer possível armadilha e sabe a hora de exagerar e de se conter. Boa parte do interesse que o longa pode despertar reside na atriz.

Entre os coadjuvantes, temos uma figura interessante na assistente Francesca (Noémie Merlant, de Retrato de uma Jovem em Chamas, 2019), muito dedicada e respeitosa para com sua mentora. Seria genuíno ou interesse? Outros destaques, além da ótima Nina Hoss, são Mark Strong (de Cruella, 2021) e Julian Glover (de Game of Thrones), compondo personagens que se mostram complexos no que revelam e no que deixam abaixo da superfície.

Se os diálogos, escritos por Field, ajudam os atores e facilitam o trabalho deles, também podem afastar parte do público. Fora a questão técnica, já que muito do que é falado em alemão não é legendado na versão que foi exibida nos cinemas, há a complexidade das falas. Em certos momentos, os personagens parecem rodear com palavras empertigadas e não chegar a lugar algum. Se isso pode ser uma intenção clara do diretor e roteirista, acentuando a vaidade e a falsidade do meio mostrado, pode também manter o espectador desinteressado. Muitas pessoas deixaram a sessão antes do fim.

Ao final das duas horas e quarenta minutos de projeção, a única certeza acerca de Tár é o talento de Blanchett, que pode levar seu terceiro Oscar – a presença (da voz) do colega Alec Baldwin é um bom sinal, já que ele esteve nos dois filmes anteriores (O Aviador, 2004, e Blue Jasmine, 2013). Quanto aos possíveis erros e acertos de Field, tudo pode ser discutido. O filme poderia ser mais curto? Certamente. Deveria. Há pontas soltas ao final? Sim. Pode-se argumentar que as coisas, na vida real, não são mastigadas e explicadas, e as pessoas são complexas. Algumas, mais do que outras.

Entre concertos, ela arruma tempo para dar aulas Master

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Repescagem 2022: Glass Onion

Depois do sucesso de Entre Facas e Segredos (Knives Out, 2019), o diretor e roteirista Rian Johnson (de Star Wars: Os Últimos Jedi, 2017) conseguiu fechar acordo com a Netflix para uma continuação. Na verdade, para outro caso investigativo do famoso detetive Benoit Blanc, interessante personagem de Daniel “James Bond” Craig. Não há ligação entre os filmes e, gostando-se de um, fica a recomendação para se assistir ao outro.

Glass Onion: Um Mistério Knives Out (2022) ficou um título nacional ridículo. O original significa nada mais que ver algo onde não há nada. Numa cebola de vidro, seria fácil ver que não há nada em cada camada. Como analisar as letras dos Beatles atrás de significados que nem os quatros imaginaram. E é o nome da mansão do bilionário Miles Bron (Edward Norton), com quem várias pessoas têm o rabo preso.

Convidados para um final de semana numa ilha paradisíaca, os amigos são surpreendidos por um assassinato. Que sorte ter um detetive por perto! As estranhas coincidências são explicadas e o roteiro quase não tem furos, mas fica claro que Johnson deve ter voltado no início várias vezes para incluir pistas e informações que seriam úteis no final. Além da trama divertida à Agatha Christie, temos um ótimo elenco, que inclui Kate Hudson, Kathryn Hahn, Janelle Monáe, Leslie Odom Jr. e Dave Bautista, além de ótimas pontas.

Qualquer filme de mistério que se preze tem uma cena de jantar com todos os convidados

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Tom Hanks é um homem chamado Otto

“Nenhum homem é uma ilha”, escreveu John Donne. Pois um homem chamado Otto (o título original) bem gostaria de ser uma, sem ninguém em volta para incomodá-lo. “Idiotas”, ele está sempre repetindo. O Pior Vizinho do Mundo (A Man Called Otto, 2022) chega aos cinemas essa semana se aproveitando da imagem de bom moço de Tom Hanks, colocando-o como um idoso mal humorado que está sempre fazendo os outros seguirem as regras. Por mais bestas que possam ser.

De tão sistemático e quadrado, Otto parece ser a versão mais velha de Forrest Gump (1994), grande personagem de Hanks. Não chega a ser um criminoso, como em Estrada para Perdição (Road to Perdition, 2002), nem um provável escroque como o Coronel Parker de Elvis (2022). No entanto, está longe dos bonzinhos que chegavam para o ator no início de carreira, o que mostra que Hanks tem sido bem criterioso (já há alguns anos) ao escolher seus papéis. Não é fácil atrair simpatia para o antipático Otto.

Quando o conhecemos, ele vive sozinho, prestes a se aposentar em uma empresa à qual se dedicou por anos e que não lhe deu valor algum. Com uma vida insossa e sem perspectivas, o suicídio parece uma boa ideia. Em meio a flashbacks que nos apresentam melhor ao sujeito e à Sonya (Rachel Keller, de Dirty John), vizinhos novos chegam e começam a alterar aquela rotina monótona e aborrecida.

O roteirista, David Magee, tem um histórico de filmes com temas pesados que conseguem se manter otimistas, sem sentimentalismos baratos (como em Em Busca da Terra do Nunca, 2004, e As Aventuras de Pi, 2012). Magee se baseia, aqui, não só no livro de Fredrik Backman, mas também no longa sueco Um Homem Chamado Ove (2015), de Hannes Holm, que teve duas indicações ao Oscar (Melhor Filme Internacional e Melhor Maquiagem e Cabelo).

Em Busca da Terra do Nunca marcou a primeira colaboração de Magee com Marc Foster, diretor de Otto que tem obras bem diversas em sua filmografia: de James Bond (Quantum of Solace, 2008) a dramas pesados (como O Caçador de Pipas, 2007), passando por comédias (Mais Estranho que a Ficção, 2006) e zumbis (Guerra Mundial Z, 2013). Foster segura no drama, conseguindo evitar apelações, mesmo tratando-se de uma história triste. Não será fácil, para o público, evitar as lágrimas, mas Foster e Magee não abusam.

Em meio a toda essa tristeza, o casal novo na vizinhança proporciona momentos mais leves, sempre mantendo um certo realismo. O marido (Manuel Garcia-Rulfo, de Esquadrão 6, 2019), é meio palerma, quem mantém a família no bom caminho é a esposa (Mariana Treviño, de Club de Cuervos – acima), que acaba tendo mais interações com Otto. Temos outros vizinhos, com destaque para Jimmy – Cameron Britton chamou bastante atenção como um psicopata em Mindhunter e é sempre uma figura interessante. Mack Bayda (de Ouija, 2020), como Malcolm, nos proporciona um momento bem emocionante.

Se O Pior Vizinho do Mundo não chega a ser um destaque na fantástica carreira de Hanks, passa longe de ser uma vergonha, como Larry Crowne (2011) ou Joe Contra o Vulcão (Joe Versus the Volcano, 1990). É um filme sensível, com sequências engraçadas e o carisma inegável de seu astro. E ainda foi uma boa oportunidade para Hanks trabalhar com o filho, Truman Hanks (de Relatos do Mundo, 2020), os dois no mesmo personagem, inclusive.

Os Hanks posam com o casal de vizinhos na estreia

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