Uma mulher preta protagonista da história. Assim é “Um defeito de cor”, da Ana Maria Gonçalves. E assim também é o nosso Brasil, cuja força trabalhadora vem, em sua maior parte, direta ou indiretamente delas. Se até 2006 não havia uma ode que lhes fizesse justiça, esse livro as enaltece à altura. E lê-lo é como conhecer a mais pura essência brasileira.
A Kehinde é uma mulher africana de origem eve que foi trazida para o Brasil aos 8 anos para ser escravizada. O livro conta seu crescimento, sua história e todas as suas lutas que fazem ecos muito familiares às vidas das mulheres pretas brasileiras de hoje.
A narrativa é atravessada pela Revolta dos Malês, descreve crenças africanas dos povos iorubá, fala dos orixás, dos rituais voduns, da capoeira, da importância de Salvador para o Brasil colonial. E fico pensando em como todo esse conhecimento tão essencial ao nosso entendimento como brasileiros esteve relegado ao segundo plano durante tanto tempo. Em como narrativas como esta foram facilmente apagadas do ensino nas escolas em favor de todo o eurocentrismo. E em como as influências dos africanos na nossa cultura foram marginalizadas, principalmente enquanto são essenciais para a constituição do nosso povo em todos os sentidos. É absolutamente bizarro. E chama-se racismo.
Ultimamente, tenho refletido sobre as repercussões desse mal no nosso mundo e ele se estende de forma muito absurda e nos faz perder tanto. É uma praga com tentáculos mentais muito aderidos. Precisamos combatê-lo com real esforço.
Indico esse livro para quem quiser ser a Kehinde. Ou Luísa, seu nome brasileiro. Ou Esméria, Nega Florinda, Claudina. São muitas as heroínas.
Parte do nosso orgulho, do não-viralatismo, vem de não queremos ser iguais às nações poderosas do mundo, mas de amarmos o que somos. Merecemos reconhecimento por essa mistura tão peculiar que resultou em um país diverso, único, com pessoas afetivas, sol e solidariedade. Porém, não há como gostar do que não conhecemos. O livro da Ana Maria nos dá essa oportunidade de, embora sendo ficção, fornecer fatos históricos reais e comportamentos culturais que nos permitem compreender melhor a identidade brasileira. E combater e melhorar atitudes “coloniais” arcaicas que ainda preservamos. E abraçar e admirar a coragem do nosso povo que não sucumbe mesmo tendo vivido e ainda vivendo com grilhões pesados nos pés.
Há muita gente que ainda pensa como sinhá ou senhor de escravos. Pessoas com mais de duzentos anos de atraso reflexivo. Que a história nos ajude sempre a seguir em frente, reparar nossos erros e caminharmos rumo a uma nação melhor sem imitar quem não nos pertence, mas com reverência a todas as cores que nos compõem.
Tenho imenso orgulho de você, Tata. Que alma linda a sua!