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A angústia e suas manifestações no corpo

Sandra Belchiolina

Freud e Lacan pesquisaram a angústia humana e apontaram um outro saber – o da linguagem do inconsciente e de como ela se manifesta no corpo do falasser. Com o avanço dos discursos da ciência e do capitalismo no século XX, a causa das manifestações descritas nos manuais médicos como distúrbios e síndromes foi escamoteada, e a angústia não tem lugar nesses discursos. Contudo, a psicanálise insiste em esclarecer o seu saber.

O corpo, para a psicanálise e os ensinos de Lacan, é banhado pela linguagem. Corpo como inscrição do inconsciente estruturado como uma linguagem, metaforizando e metonimizando as mensagens advindas do Outro.

Mas ele também dá a ler algo além da mensagem, algo que, não deixando de ser um escrito, permanece enigmático. Pois, algo da lalíngua aparece no corpo e em seus tropeços… Pode reproduzir o traumatismo do primeiro encontro entre o que foi falado e o que foi ouvido e, em seguida, lalado. Essa reatualização do encontro com a lalíngua não ocorre sem angústia, inibição ou novos sintomas (QUINET, 2019, p. 226).

IZCOVICH aponta, em Televisão, que Lacan deixa clara a divergência que há entre “anatomia e a doença a propósito do sintoma na psicanálise”, para indicar que uma estrutura – a da linguagem – recorta o corpo, determinando um corpo outro que não aquele que encontra a sua condição na anatomia. A linguagem determina o corpo e esse é o “corpo vivo, atravessado pelo significante que determina as modalidades de gozo do corpo.” (p. 57-59).

Dominique Fingermann esclarece que os DSMs – Manuais de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais – apenas tentam classificar, em fenômeno, aquilo que quebra a homeostase da vida. Distúrbios, transtornos, síndromes etc. são relatados “com uma proliferação de detalhes que fazem perder de vista a estrutura única do ser falante, que lhe proporciona angústia e sintoma como marca distintiva de sua humanidade, diferenciando-o, assim, radicalmente de todos os outros animais vivos.” (2016, p. 93).

Lacan aponta a angústia experimentada no Eu como a junção do Real e do Imaginário. “Ela tem a estrutura temporal do instante, mas promove uma experiência de abismo temporal que pode se manifestar como uma sensação de ‘petrificação motora’.” E assim Freud já a descrevia no século XIX como “ataque de angústia” – sentimento de angústia sem nenhuma representação associada e que pode estar ligado ao distúrbio de uma ou mais funções corporais… e, em suas descrições, o sentimento de angústia frequentemente recua para o segundo plano (FREUD, 1894-95/s).

No Seminário 10, o psicanalista aponta que a angústia é um afeto não recalcado. “Isso, Freud o diz como eu. Ele se desprende, fica à deriva. Podemos encontrá-lo deslocado, enlouquecido, invertido, metabolizado, mas ele não é recalcado. O que é recalcado são os significantes que o amarram.” (LACAN, 2005, p. 23)

Segundo Dominique, “o pânico revela o que a fobia e sua fuga escamoteiam”. Como Freud deixou claro, a fobia elege um objeto – exemplo do cavalo para o pequeno Hans (criança analisada por Freud). E Lacan avança: “a verdadeira função da fobia é substituir o objeto da angústia por um significante que causa medo” (LACAN, 1968-69/2008, p. 297 apud FINGERMANN). No Seminário 16, insiste: “ante o enigma da angústia, a relação de perigo assinalada é tranquilizadora”. Em “A Terceira”, ele traz: “a angústia é justamente algo que se situa alhures em nosso corpo, é o sentimento que surge dessa suspeita que nos advém de nos reduzirmos a nosso corpo”.

A autora citada aponta o aspecto artificial e exagerado das crises de pânico, encobrimento imaginário do real da angústia… E ainda questiona: “Podemos formular a hipótese de que as crises de pânico seriam o efeito de uma derrapagem entre real e imaginário, à qual a fobia remediaria produzindo um ponto de sutura da estrutura entre real e simbólico, nó fundamental da substituição do significante ao rastro de gozo outro no corpo?” E observa que, na clínica do psicanalista, “a angústia exacerbada no pânico proporciona frequentemente um acesso único a esse ‘íntimo/êxtimo’ de si mesmos. É difícil fazê-los falar do desamparo, pois ficam muito ocupados em narrar, nos mínimos detalhes, os efeitos pressentidos, cuja volta imaginada representa o máximo do terror, o que, na maior parte das vezes, produz desacelerações brutais de suas ascensões egóicas vertiginosas.” (ibid., p. 94)

Ainda Lacan (2005, p. 241): a angústia é o afeto que não engana, “precisamente na medida em que todo e qualquer objeto lhe escapa. A certeza da angústia é fundamentada, não ambígua. A certeza ligada ao apelo à causa primária é apenas a sombra dessa certeza fundamental.”

Soler, no prelúdio Tratamento do Corpo, aponta que, de Freud a Lacan, a psicanálise se fez leitora da época e de como seus corpos socializados se desenvolveram. “… toda a teoria analítica, de fato, diz respeito ao desamparo onde estão esses corpos encurralados nos laços sociais, para satisfazer os sujeitos. Esse era o caso em 1900, e é ainda em 2020. É o que não muda. O que dizer, então, dos efeitos próprios do capitalismo e da remodelação dos laços sociais que ele gera?”

Desamparo: significante que aparece na clínica e desdobra o que Lacan continua a referir sobre o enigma do olhar do Grande Louva-a-Deus: Che vuoi? Que queres? Que quer ele de mim? Que quer ele comigo? “Mas também de uma interrogação em suspenso que concerne diretamente ao eu: não ‘Como me quer ele?’, mas: ‘Que quer ele a respeito deste lugar do eu?’ Respostas ao enigma que remeteram à não satisfação, à incompletude e ao desamparo do sujeito que busca respostas para o Outro.”

Contudo, adverte: “em se tratando da angústia, cada malha, se assim posso dizer, só tem sentido ao deixar o vazio em que existe a angústia.” (ibid., p. 18)

Referência bibliográfica

FINGERMANN, D. (2016). Pânico e fobia: Enlace e desenlace da angústia. Comunicação de uma pesquisa em curso. Revista De Psicanálise Stylus, (32), pp. 89-98. https://doi.org/10.31683/stylus.vi32.624

FREUD, S. (1894-95). “Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada neurose de angústia”. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, s/d (versão eletrônica).

LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão final Angelina Harari e preparação de texto André Telles; tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

SOLER, C. O tratamento dos corpos em nossa época e na psicanálise. Prelúdio, 2019.

QUINET, A. O inconsciente teatral – psicanálise e teatro: homologias, 1ª ed. Rio de Janeiro: Atos e Divãs, 2019.

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