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Amor torto

Mário Sérgio

Em eventuais instantes, nós, as PcD, somos percebidos apenas pela deficiência que nos afeta. E, claro, a esses olhares aviltados escapam nossos sentimentos, nossas emoções e o humano para muito além das nossas limitações físicas ou sensoriais. 

Entre tantas histórias emocionantes que experimentamos ou assistimos, algumas se mostraram transformadoras, no sentido de nos permitir crescimento enquanto pessoas. 

Nos estertores do século XX, meados de 1996, tive a honra de participar de uma empolgante competição de basquete em cadeira de rodas. Ocorreu na capital goiana e tivemos a honra da presença do grande Gilson Ramos Santos (Doinha), renomado jogador, não PcD, que assumiu o importante protagonismo na causa do esporte adaptado e faz ainda um trabalho belíssimo nessa área. 

Entre os competidores, havia uma moça, muito bela, delicada e, ao mesmo tempo, de cenho fechado, ainda não totalmente conformada na sua nova condição, cadeirante pela amputação das duas pernas em acidente de trânsito. É comum que pessoas que se tornem PcD depois de terem experimentado a vida sem as restrições e dificuldades produzidos pelos traumas, sofram bastante durante a fase de adaptação. Como ocorreu a ela. Nossa equipe feminina disputava uma partida contra a equipe dela enquanto assistíamos a peleja. Um dos colegas não conseguia desviar o olhar daquela deusa triste que se esforçava perceptivelmente para se reconhecer como parte importante de seu time. Um atropelo aqui, um lançamento ali, a queda da cadeira e a dificuldade de retomar a postura, com apoio e sorriso dos outros sequelados. O jogo animado, célere, causava gritos e ovações na pequena plateia, mas o toque dela iluminava o rosto e o olhar de nosso colega, sobrevivente da poliomielite, com paixão de adolescente. Era delicioso ver aquilo. 

Acredito que, como dizia Paulinho da Viola na excelente composição do pesquisador paulista Paulo Vanzolini, Bandeira de Guerra (1979), naquele momento, “foi nascer contra a vontade esse ‘amor torto’”.

E a relação, originada numa arena desportiva, afinal se consolidou graciosamente, para alegria de ambos. E isso me lembra a obra “Mon Émouvant Amour” (1964) do grande Charlers Aznavour. Ouvir a ganhadora do prêmio Oscar, pelo filme Cabaret, é emocionante. E Liza Minelli interpretando “Quiet Love”(1972), numa versão para o inglês desta fenomenal canção é uma viagem com o coração em paz e a alma encantada. Ela não apenas canta e interpreta, parece vivê-la por inteiro e ainda nos conduz pela mão na brisa de sua voz. A letra fala da paixão de uma jovem por um rapaz PcD, surdo; e de sua dedicação ao aprendizado da linguagem de sinais para conseguir comunicar com ele. Emocionante.

As razões que o coração tem para se apaixonar por alguém são inexpugnáveis. Estão guardadas num ponto intangível do olhar; ou na pausa entre as batidas do coração; ou sob o cheiro da pele do ente que inspire a paixão. Ou, enfim, não está em nenhum sentido nem matéria… É por ser. Brota sem a necessidade de qualquer centelha externa. Assim como de tortos, surge um sentimento ereto, o verdadeiro amor. 

 

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