Essa mulher em frente ao espelho sou eu. Envelhecida, trago no rosto rugas profundas. Tenho o semblante pesado e tristonho. Essa mulher sou eu? Acendo a luz e me sinto ainda pior. O que vejo não me agrada. Levo um tempo observando melhor as marcas que o passar dos anos deixou em mim. Respiro fundo, mas não choro. Minhas lágrimas secaram. Faz tempo que não choro mais. Nem em filmes tristes. Nem por músicas românticas. Nem em casamentos ou enterros. Nada mais me faz chorar.
Essa mulher em frente ao espelho sou eu. Sempre vestida de cinza, uma total indefinição entre o alegre e o triste, entre o ânimo e o desânimo. Engordei muito com o passar do tempo. Encontro na comida o prazer que me foi negado em uma vida feliz. Com o sobrepeso, desenvolvi hipertensão. Tomo remédios. A alimentação descontrolada me trouxe problemas de colesterol e triglicérides. Tomo remédios. Não faço academia, detesto qualquer atividade física. Odeio transpirar. A falta de exercícios me causa dificuldades para dormir. Tomo remédios. A falta de lubrificação nos joelhos provoca dor na perna direita, e, no lado esquerdo, tenho uma leve artrose no quadril. Tomo remédios. Apesar de não gostar de doces, minha glicose oscila entre o normal e o máximo permitido.
Essa mulher em frente ao espelho sou eu. Sem autoestima. Sem amor-próprio. Olho para minha história e nada me traz saudade. Apenas lembranças — umas boas, outras ruins. Não consigo ser grata à vida. Não sinto gratidão por nada. Que motivos eu teria? Não tenho grandes qualidades. Sou um ser humano absolutamente normal, distante, frio e egoísta. Não posso ser atacada por ser tão sincera e franca. Poucas coisas me abalam ou me tiram do sério. O tempo me ensinou a encarar meus próprios defeitos; acato-os sem o menor pudor. Sou rude comigo, assim como a vida também tem sido dura. Difícil. Penosa.
Essa mulher em frente ao espelho sou eu. Sem vaidade, sem atrativos, sem voz ativa. Uma mulher que viveu sozinha a vida inteira. Nunca foi amada e nunca amou ninguém. Nenhuma atração pelo sexo oposto. Admirei, sim, meu único chefe em mais de vinte anos. Trabalhávamos juntos na Biblioteca Municipal — ele, o diretor; eu, uma bibliotecária. Um homem discreto, elegante, inteligente, culto. Uns olhos verdes absurdamente lindos iluminavam aquele rosto. Eram dois faróis. Mas nunca fui além da admiração. Algumas vezes olhei com curiosidade para o zíper de sua calça jeans. Haveria algum volume ali? Ele teria genitais? Eu me perguntava. Acho que não, eu mesma respondia. Nada me atraía em ninguém. Nunca soube o que é um beijo na boca. Beijo de língua. Ouvia as colegas da biblioteca contarem casos apimentados. Todas davam gargalhadas. Eu ouvia, sem comentar. Nenhuma acreditava em mim. Deixava que pensassem que eu escondia algo interessante. Algum segredo. Um mistério!
O espelho me mostra uma mulher indiferente. Fria, distante, seca. Mas essa mulher não é tão infeliz quanto poderia ser. Órfã, criada por uma tia solteirona, católica, apostólica, romana, aprendi desde cedo que a igreja era onde a paz do Senhor habitava. Quanto mais rezava, mais percebia o exagero entre a tia, o padre e as integrantes do Apostolado da Oração. Descobri nos livros meu maior prazer. Entendi com clareza que a ignorância também era um componente daquela comunidade onde vivia.
Essa mulher que vejo no espelho sou eu. Estudei com muito esforço. Escolhi biblioteconomia porque adorava livros. Só eles me levavam a lugares que jamais visitaria sozinha. Só eles contavam segredos que jamais imaginaria. Apenas eles detalhavam relações amorosas que desconhecia e continuo sem conhecer. Com os personagens, eu me identificava: brigava com eles, xingava, agindo como se tudo fosse real.
Essa mulher que vejo no espelho se formou. Cuidou da tia idosa até que ela partiu. Devolveu a casa onde viviam, mas encontrou um lugar decente para morar. Estudou para um concurso público e conseguiu um emprego que garantia uma vida sem muito sofrimento. Nunca conseguiu estudar inglês, apenas lia alguns livros sem entender tudo. Também não aprendeu espanhol, apesar de achar mais fácil de compreender. Concluiu um curso de computação e aprendeu a usar a internet e redes sociais. No trabalho, usava o conhecimento para facilitar as buscas e orientar os frequentadores da biblioteca. Sempre muito paciente, acreditava na dignidade da pessoa humana.
Estamos em janeiro. Faz muito calor. Ainda bem que há ar-condicionado em todos os andares da biblioteca. E onde ficam minha mesa e armários é o local mais fresquinho do prédio. Estou feliz. Houve um sorteio de Natal. Pela primeira vez na vida, fui premiada. Ganhei um computador. Não sei ainda tudo o que ele pode fazer, mas é meu.
Poderei pesquisar, ouvir música, ver filmes, conversar por vídeo, usar o WhatsApp. O Celinho do CPD vai me ensinar tudo. Ele disse que vou viver uma nova fase. Meu Dell XPS-7390-A10S será minha conexão com o mundo. Poderei acessar receitas, aulas de tricô e crochê, aprender a tocar flauta doce, assistir a missas, ouvir corais de música sacra e orquestras, ver filmes antigos, séries e muito mais.
Um novo mundo se abre diante de mim. Terei uma vida ocupada com situações reais, de minhas escolhas. Selecionarei minhas preferências, decidirei o que acessar ou evitar. Posso até ligar o computador à TV. Os cabos e complementos já estão com Celinho. No próximo final de semana, ele virá configurar tudo. Farei um almoço simples e comprarei vinho tinto. Quero comemorar. A caminho do chuveiro, paro em frente ao espelho e sorrio levemente: essa mulher no espelho será outra!
Wander Aguiar Estou organizando minha próxima viagem e, na medida em que estou separando as…
Mandei fazer um colar novo. Um colar todo feito de elos. Cada elo conta um…
Gosto das meias palavras ou de poucas palavras Das reticências que dão margem a imaginação…
Daniela Piroli Cabral danielapirolicabral@gmail.com Ela imatura, ele inseguro Ela ingênua, ele arrogante Ela erótica, ele…
Eduardo de Ávila O ano mal começou e já me dá sinais que será, mais…
Silvia Ribeiro Que toda mulher é vaidosa por natureza já ficou reluzente, basta checar o…
View Comments
Rosa, essa mulher que vejo no espelho nao é você e nem eu. Somos o contrário e temos uma grande sede de aprender e de viver. Mas conheço algumas que estão emaranhadas no triste viver. Bjs querida
Rosângela, domingo sem seu texto é um domingo sem sol, de nuvens cinzas escondendo o céu, sem ventos e quase sem ar.
Nunca somos tão sinceros com a gente mesmo quando nos vemos no espelho por alguns minutos. Já escrevi e repito: todos que vivem apontando defeitos nos outros precisam conversar consigo mesmo no espelho e de portas trancadas.
Bom domingo e obrigado pela bela “espelhada”.
Essa mulher não sou eu!!!!!! Graças a Deus!!!!!
Essa mulher não me representa...Sou o oposto dela...Procuro extrair da vida o que há de melhor... Eu sou o melhor que há nesta vida...Me olho no espelho e só vejo: muita alegria de viver...muita resiliência...muita gratidão por tudo...muita esperança etc
Só vejo o lado positivo da vida...
Sou muito feliz ☺️ e transmito isso ao meu redor ...
Vivaaa Euuuu.....
..
Essa mulher está longe de ser eu e vejo triste o seu caminhar e dia solidão
Essa mulher não é vc e nada tem a ver com a escritora, minha amiga Rô. Kkkk
A única semelhança é o amor aos livros, o gosto pela leitura. De resto nada se parece.
É o avesso do avesso. Graças a Deus!!!
Mas o texto é delicioso, como sempre.
Zanza, realmente esta mulher não é você e nem eu, graças a Deus!
Mas ao longo do texto, pra lá da metade, tem sim, alguma coisa de você, quando diz “ selecionarei minhas preferências, um almoço regado a um bom vinho tinto, mesmo sabendo que você ( nós),às vezes tomamos um rosê, um branco…”.
Ah! E sobre detestar o calor, a sudorese, e outras coisinhas mais que me fizeram me lembrar de você, de nossas conversas…
E obrigada por mais um bom texto!
Grande abraço amiga!
Feliz finalzinho de domingo!
Zanza, definitivamente essa mulher no espelho é o contrário de você.
Graças a Deus!
Mesmo assim, gostei muito.
Beijos.